Graciliano Ramos - Resumo Vidas Secas

02/12/2012 11:05

 

Graciliano Ramos

NA PLANICIE avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem tres leguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, atraves dos galhos pelados da catinga rala.

Arrastaram-se para la, devagar, Sinha Vitoria com o filho mais novo escanchado no quarto e o bau de folha na cabeca, Fabiano sombrio, cambaio, o aio a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturao, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atras.

Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pos-se a chorar, sentou-se no chao.

- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.

Nao obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto nao acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.

A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas.

O voo negro dos urubus fazia circulos altos em redor de bichos moribundos.

- Anda, excomungado.

O pirralho nao se mexeu, e Fabiano desejou mata-lo. Tinha o coracao grosso, queria responsabilizar alguem pela sua desgraca. A seca aparecia-lhe como um fato necessario - e a obstinacao da crianca irritava-o. Certamente esse obstaculo miudo nao era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, nao sabia onde.

Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pes.

Pelo espirito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, cocou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinha Vitoria estirou o beico indicando vagamente uma direcao e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturao, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estomago, frio como um defunto. Ai a colera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossivel abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha Vitoria, pos o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caiam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinha Vitoria aprovou esse arranjo, lancou de novo a interjeicao gutural, designou os juazeiros invisiveis.

E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silencio grande.

Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas a mostra, corria ofegando, a lingua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam.

Ainda na vespera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, a beira de uma poca: a fome apertara demais os retirantes e por ali nao existia sinal de comida. Baleia jantara os pes, a cabeca, os ossos do amigo, e nao guardava lembranca disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas brilhantes aos objetos familiares, estranhava nao ver sobre o bau de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal.

Fabiano tambem as vezes sentia falta dela, mas logo a recordacao chegava. Tinha andado a procurar raizes, a toa: o resto da farinha acabara, nao se ouvia um berro de res perdida na catinga. Sinha Vitoria, queimando o assento no chao, as maos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava em acontecimentos antigos que nao se relacionavam: festas de casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusao.

Despertara-a um grito aspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pes apalhetados, numa atitude ridicula. Resolvera de supetao aproveita-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inutil. Nao podia deixar de ser mudo.. Ordinariamente a familia falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a cachorra.

As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e sangravam.

Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperanca de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para nao estragar forca.

Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que nao viam sombra. Sinha Vitoria acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a cabeca encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia vagamente um monte proximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se junto dele.

Estavam no patio de uma fazenda sem vida O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e tambem deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido.

Fabiano procurou em vao perceber um toque de chocalho.

Avizinhou-se da casa, bateu, tentou forcar a porta.

Encontrando resistencia, penetrou num cercadinho cheio de plantas mortas, rodeou a tapera, alcancou o terreiro do fundo, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras murchas, um pe de turco e o prolongamento da cerca do curral.

Trepou-se no mourao do canto, examinou a catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no copiar, fazendo tencao de hospedar ali a familia. Mas chegando aos juazeiros, encontrou os meninos adormecidos e nao quis acorda-los. Foi apanhar gravetos, trouxe do chiqueiro das cabras uma bracada de madeira meio roida pelo cupim, arrancou touceiras de macambira, arrumou tudo para a fogueira.

Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregacou as ventas, sentiu cheiro de preas, farejou um minuto, localizouos no morro proximo e saiu correndo.

Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se uma sombra passava por cima do monte. Tocou o braco da mulher, apontou o ceu, ficaram os dois algum tempo aguentando a claridade do sol. Enxugaram as lagrimas, foram agachar-se perto dos filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrivel, aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente.

Entrava dia e saia dia. As noites cobriam a terra de chofre.

A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas vermelhidoes do poente.

Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgracas e os seus pavores. O coracao de Fabiano bateu junto do coracao de Sinha Vitoria, um abraco cansado aproximou os farrapos que os cobriam.

Resistiram a fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem animo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperanca que os alentava.

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um prea. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as palpebras, afastando pedacos de sonho. Sinha Vitoria beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.

Aquilo era caca bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo.

E Fabiano queria viver. Olhou o ceu com resolucao. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com seguranca, esquecendo as rachaduras' que lhe estragavam os dedos e os calcanhares.

Sinha Vitoria remexeu no bau, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.

Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama.

Cavou a areia com as unhas, esperou que a agua marejasse e, debrucando-se no chao, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma, duas, tres, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no ceu. O poente cobria-se de cirros - e uma alegria doida enchia o coracao de Fabiano.

Pensou na familia, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer nao se diferencava muito da bolandeira de seu Tomas. Agora, deitado, apertava a barriga e batia os dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomas? Olhou o ceu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua surgiu, grande e branca. Certamente ia chover.

Seu Tomas fugira tambem, com a seca, a bolandeira estava parada. E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Nao sabia porque, mas era. Uma, duas, tres, havia mais de cinco estrelas no ceu. A lua estava cercada de um halo cor de leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos animariam a . solidao. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, Sinha Vitoria vestiria saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde.

Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam la em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do prea morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para nao derramar a agua salobra. Subiu a ladeira. A aragem morna acudia os xiquexiques e os mandacarus. Uma palpitacao nova.

Sentiu um arrepio na catinga, uma ressurreicao de garranchos e folhas secas.

Chegou. Pos a cuia no chao, escorou-a com pedras, matou a sede da familia. Em seguida acocorou-se, remexeu o aio, tirou o fuzil, acendeu as raizes de macambira, soprou-as, inchando as bochechas cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiulhe o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos depois o prea torcia-se e chiava no espeto de alecrim.

Eram todos felizes. Sinha Vitoria vestiria uma saia larga de ramagens. A cara murcha de sinha Vitoria remocaria, as nadegas bambas de Sinha Vitoria engrossariam, a roupa encarnada de Sinha Vitoria provocaria a inveja das outras caboclas.

A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas, tres, agora havia poucas estrelas no ceu. Ali perto a nuvem escurecia o morro.

A fazenda renasceria - e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo.

Os trocos minguados ajuntavam-se no chao: a espingarda de pederneira, o aio, a cuia de agua o bau de folha pintada. A fogueira estalava. O prea chiava em cima das brasas.

Uma ressurreicao. As cores da saude voltariam a cara triste de Sinha Vitoria. Os meninos se espojariam na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores.

A catinga ficaria verde.

Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como nao podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciencia a hora de mastigar os ossos.

Depois iria dormir.

Capitulo II - Fabiano FABIANO curou no rasto a bicheira da novilha raposa. Levava no aio um frasco de creolina, e se houvesse achado o animal, teria feito o curativo ordinario. Nao o encontrou, mas supos distinguir as pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois gravetos no chao e rezou. Se o bicho nao estivesse morto, voltaria para o curral, que a oracao era forte.

Cumprida a obrigacao, Fabiano levantou-se com a consciencia tranquila e marchou para casa. Chegou-se a beira do rio. A areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca, as alpercatas dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que lhe pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. A cabeca inclinada, o espinhaco curvo, agitava os bracos para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inuteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avo e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as maos. E os filhos ja comecavam a reproduzir o gesto hereditario.

Chape-chape. Os tres pares de alpercatas batiam na lama rachada, seca e branca por cima, preta e mole por baixo. A lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balancava.

A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregacado, procurando na catinga a novilha raposa.

Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a familia morrendo de fome, comendo raizes. Caira no fim do patio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado a camarinha escura, pareciam ratos - e a lembranca dos sofrimentos passados esmorecera.

Pisou com firmeza no chao gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aio um pedaco de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pos-se a fumar regalado.

- Fabiano, voce e um homem, exclamou em voz alta.

Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar so. E, pensando bem, ele nao era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presenca dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguem tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando: - Voce e um bicho, Fabiano.

Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.

Chegara naquela situacao medonha - e ali estava, forte, ate gordo, fumando o seu cigarro de palha.

- Um bicho, Fabiano.

Era. Apossara-se da casa porque nao tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucuna. Viera a trovoada.

E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus prestimos, resmungando, cocando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrao aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.

Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguem o tiraria dali.

Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raizes, estava plantado. Olhou as quipas, os mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraunas. Ele, Sinha Vitoria, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados a terra.

Chape-chape. As alpercatas batiam no chao rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os bracos moviam-se desengoncados. Parecia um macaco.

Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, a toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hospede. Sim senhor, hospede que demorava demais, tomava amizade a casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.

Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as maos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a caricia, enterneceu-se - Voce e um bicho, Baleia.

Vivia longe dos homens, so se dava bem com animais. Os seus pes duros quebravam espinhos e nao sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele.

E falava uma linguagem cantada, monossilabica e gutural, que o companheiro entendia. A pe, nao se aguentava bem.

Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. As vezes utilizava nas relacoes com as pessoas a mesma lingua com que se dirigia aos brutos - exclamacoes, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e dificeis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vao, mas sabia que elas eram inuteis e talvez perigosas.

Uma das criancas aproximou-se, perguntou-lhe qualquer coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta a repeticao da pergunta. Nao percebendo o que o filho desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o que nao era da conta dele, como iria acabar? Repeliu-o, vexado: - Esses capetas tem ideias ...

Nao completou o pensamento, mas achou que aquilo estava errado. Tentou recordar o seu tempo de infancia, viu-se miudo, enfezado, a camiSinha encardida e rota acompanhando o pai no servico do campo, interrogando-o debalde. Chamou os filhos, falou de coisas imediatas, procurou interessa-los.

Bateu palmas - Eco! eco! A cachorra Baleia saiu correndo entre os alastrados e quipas, farejando a novilha raposa. Depois de alguns minutos voltou desanimada, triste, o rabo murcho. Fabiano consolou-a, afagou-a. Queria apenas dar um ensinamento aos meninos. Era bom eles saberem que deviam proceder assim.

Alargou o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou a ladeira que levava ao patio. Ia inquieto, uma sombra no olho azulado. Era como se na sua vida houvesse aparecido um buraco. Necessitava falar com a mulher, afastar aquela perturbacao, encher os cestos, dar pedacos de mandacaru ao gado. Felizmente a novilha estava curada com reza. Se morresse, nao seria por culpa dele.

- Eco! eco! Baleia voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As criancas divertiram-se, animaram-se, e o espirito de Fabiano se destoldou. Aquilo e que estava certo. Baleia nao podia achar a novilha num banco de macambira, mas era conveniente que os meninos se acostumassem ao exercicio facil - bater palmas, expandir-se em gritaria, seguindo os movimentos do animal. A cachorra tornou a voltar, a lingua pendurada, arquejando. Fabiano tomou a frente do grupo, satisfeito com a licao, pensando na egua que ia montar, uma egua que nao fora ferrada nem levara sela. Haveria na catinga um barulho medonho.

Agora queria entender-se com Sinha Vitoria a respeito da educacao dos pequenos. Certamente ela nao era culpada.

Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam perguntadores, insuportaveis. Fabiano dava-se bem com a ignorancia. Tinha o direito de saber? Tinha? Nao tinha.

- Esta ai.

Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.

Lembrou-se de seu Tomas da bolandeira. Dos homens do sertao o mais arrasado era seu Tomas da bolandeira. Porque? So se era porque lia demais.

Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: - "seu Tomas, vossemece nao regula. Para que tanto papel? Quando a desgraca chegar, seu Tomas se estrepa, igualzinho aos outros." Pois viera a seca, o pobre do velho, tao bom e tao lido, perdera tudo, andava por ai, mole. Talvez ja tivesse dado o couro as varas, que pessoa como ele nao podia aguentar verao puxado.

Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu Tomas da bolandeira passava, amarelo, sisudo, corcunda, montado num cavalo cego, pe aqui, pe acola, Fabiano e outros semelhantes descobriam-se. E seu Tomas respondia tocando na beira do chapeu de palha, virava-se para um lado e para outro, abrindo muito as pernas calcadas em botas pretas com remendos vermelhos.

Em horas de maluqueira Fabiano desejava imita-lo: dizia palavras dificeis, truncando tudo, o convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele nao tinha nascido para falar certo.

Seu Tomas da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas nao sabia mandar: pedia.

Esquisitice um homem remediado ser cortes. Ate o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele.

Ah! Quem disse que nao obedeciam? Os outros brancos eram diferentes. O patrao atual, por exemplo, berrava sem precisao. Quase nunca vinha a fazenda, so botava os pes nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o servico ia bem, mas o proprietario descompunha o vaqueiro.

Natural. Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia as descomposturas com o chapeu de couro debaixo do braco, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava nao emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo so queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha duvida? Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos esperasse. Ao ser contratado, recebera o cavalo de fabrica, perneiras, gibao, guarda-peito e sapatoes de couro cru, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o substituisse.

Sinha Vitoria desejava possuir uma cama igual a de seu Tomas da bolandeira. Doidice. Nao dizia nada para nao contraria-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrao os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau.

Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, nao ficaria planta verde. Arrepiou-se.

Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos ruins. A desgraca estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar.

Ele marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando seixos com as alpercatas - ela se avizinhando a galope, com vontade de mata-lo.

Virou o rosto para fugir a curiosidade dos filhos, benzeuse.

Nao queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu Tomas da bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se com forca para brigar com ela e vence-la.

Nao queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeca levantada, seria homem.

- Um homem, Fabiano.

Cocou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Nao, provavelmente nao seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma res na fazenda alheia.

Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que nao se acabaria tao cedo. Passara dias sem comer, apertando o cinturao, encolhendo o estomago. Viveria muitos anos, viveria um seculo,. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos.

Tudo seco em redor. E o patrao era seco tambem, arreliado, exigente e ladrao, espinhoso como um pe de mandacaru.

Indispensavel os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se nao calejassem, teriam o fim de seu Tomas da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto,livro, tanto jornal? Morrera por causa do, estomago doente e das pernas fracas.

Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito. .. Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Nao sabia. Seu Tomas da bolandeira e que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos.

Agora tinham obrigacao de comportar-se como gente da laia deles.

Alcancou o patio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas pretas, deixou atras os juazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois. As alpercatas dos pequenos batiam no chao branco e liso. A cachorra Baleia trotava arquejando, a boca aberta.

Aquela hora Sinha Vitoria devia estar na cozinha, acocorada junto a trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de comer. Depois da comida, falaria com Sinha Vitoria a respeito da educacao dos meninos.

Capitulo III - Cadeia FABIANO tinha ido a feira da cidade comprar mantimentos.

Precisava sal, farinha, feijao e rapaduras. Sinha Vitoria pedira alem disso uma garrafa de querosene e um corte de chita vermelha. Mas o querosene de seu Inacio estava misturado com agua, e a chita da amostra era cara demais.

Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano regateando um tostao em covado, receoso de ser enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfianca dava-lhe gestos obliquos. A tarde puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo de que todos os caixeiros furtavam no preco e na medida: amarrou as notas na ponta do lenco, meteu-as na algibeira, dirigiu-se a bodega de seu Inacio, onde guardara os picuas.

Ai certificou-se novamente de que o querosene estava batizado e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Seu Inacio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os beicos a manga, contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaca tinha agua. Por que seria que seu Inacio botava agua em tudo? perguntou mentalmente.

Animou-se e interrogou o bodegueiro: - Por que e que vossemece bota agua em tudo? Seu Inacio fingiu nao ouvir. E Fabiano foi sentar-se na calcada, resolvido a conversar. O vocabulario dele era pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressoes de seu Tomas da bolandeira. Pobre de seu Tomas. Um homem tao direito sumir-se como cambembe, andar por este mundo de trouxa nas costas. Seu Tomas era pessoa de consideracao e votava. Quem diria? Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano: - Como e, camarada? Vamos jogar um trinta-e-um la dentro? Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomas da bolandeira: - Isto e. Vamos e nao vamos. Quer dizer Enfim, contanto, etc. E conforme.

Levantou-se e caminhou atras do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substancia, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia.

Atravessaram a bodega, a corredor, desembocaram numa sala onde varios tipos jogavam cartas em cima de uma esteira.

- Desafasta, ordenou o policia. Aqui tem gente.

Os jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se enrascou. Fabiano encalacrou-se tambem.

Sinha Vitoria ia danar-se, e com razao.

- Bem feito.

Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo. - Espera ai, paisano, gritou o amarelo.

Fabiano, as orelhas ardendo, nao se virou. Foi pedir a seu Inacio os trocos que ele havia guardado, vestiu o gibao, passou as correias dos alforjes no ombro, ganhou a rua.

Debaixo do jatoba do quadro taramelou com Sinha Rita louceira, sem se atrever a voltar para casa. Que desculpa iria apresentar a Sinha Vitoria? Forjava uma explicacao dificil. Perdera o embrulho da fazenda, pagara na botica uma garrafada para Sinha Rita louceira. Atrapalhava-se tinha imaginacao fraca e nao sabia mentir. Nas invencoes com que pretendia justificar-se a figura de Sinha Rita aparecia sempre, e isto o desgostava. Arruinaria uma historia sem ela, diria que haviam furtado o cobre da chita. Pois nao era? Os parceiros o tinham pelado no trinta-e-um. Mas nao devia mencionar o jogo. Contaria simplesmente que o lenco das notas ficara no bolso do gibao e levara sumico. Falaria assim: - "Comprei os mantimentos. Botei o gibao e os alforjes na bodega de seu Inacio. Encontrei um soldado amarelo" Nao, nao encontrara ninguem. Atrapalhava-se de novo. Sentia desejo de referir-se ao soldado, um conhecido velho, amigo de infancia.

A mulher se incharia com a noticia. Talvez nao se inchasse.

Era atilada, notaria a pabulagem. Pois estava acabado. O dinheiro fugira do bolso do gibao, na venda de seu Inacio.

Natural.

Repetia que era natural quando alguem lhe deu um empurrao, atirou-o contra o jatoba. A feira se desmanchava; escurecia; o homem da iluminacao, trepando numa escada, acendia os lampioes. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da farmacia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com taloes de recibos debaixo do braco; a carroca de lixo rolou na praca recolhendo cascas de frutas; seu vigario saiu de casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; Sinha Rita louceira retirou-se.

Fabiano estremeceu. Chegaria a fazenda noite fechada.

Entretido com o diabo do jogo, tonto de aguardente, deixara o tempo correr. E nao levava o querosene, ia-se alumiar durante a semana com pedacos de facheiro. Aprumou-se, disposto a viajar. Outro empurrao desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. Mexeu-se para sacudir o chapeu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada certa do chapeu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as pessoas em roda e moderou a indignacao. Na catinga ele as vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se.

- Vossemece nao tem direito de provocar os que estao quietos.

- Desafasta, bradou o policia.

E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.

- Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemece esbagacar os seus possuidos no jogo? Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questao. Nao achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiuna em cima da alpercata do vaqueiro.

- Isso nao se faz, moco, protestou Fabiano. Estou quieto.

Veja que mole e quente e pe de gente.

O outro continuou a pisar com forca. Fabiano impacientou-se e xingou a mae dele. Ai o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatoba.

- Toca pra frente, berrou o cabo.

Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusacao medonha e nao se defendeu.

- Esta certo, disse o cabo. Faca lombo, paisano.

Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lamina de facao bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanao que o arremessou para as trevas do carcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueuse atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando - Hum! hum! Porque tinham feito aquilo? Era o que nao podia saber.

Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzue sem motivo. Achava-se tao perturbado que nem acreditava naquela desgraca. Tinham-lhe caido todos em cima, de supetao, como uns condenados. Assim um homem nao podia resistir.

- Bem, bem.

Passou as maos nas costas e no peito, sentiu-se moido, os olhos azulados brilharam como olhos de gato. Tinham-no realmente surrado e prendido. Mas era um caso tao esquisito que instantes depois balancava a cabeca, duvidando, apesar das machucaduras.

Ora, o soldado amarelo ... Sim, havia um amarelo, criatura desgracada que ele, Fabiano, desmancharia com um tabefe. Nao tinha desmanchado por causa dos homens que mandavam. Cuspiu, com desprezo: - Safado, mofino, escarro de gente. Por mor de uma peste daquela, maltratava-se um pai de familia. Pensou na mulher, nos filhos e e figura.

na cachorrinha. Engatinhando, procurou os alforjes, que haviam caido no chao, certificou-se de que os objetos comprados na feira estavam todos ali. Podia ter-se perdido alguma coisa na confusao. Lembrou-se de uma fazenda vista na ultima das lojas que visitara. Bonita, encorpada, larga, vermelha e com ramagens, exatamente o que Sinha Vitoria desejava. Encolhendo um tostao em covado, por sovinice, acabava o dia daquele jeito. Tornou a mexer nos alforjes.

Sinha Vitoria devia estar desassossegada com a demora dele. A casa no escuro, os meninos em redor do fogo, a cachorra Baleia vigiando. Com certeza haviam fechado a porta da frente.

Estirou as pernas, encostou as carnes doidas ao muro. Se lhe tivessem dado tempo, ele teria explicado tudo direitinho.

Mas pegado de surpresa, embatucara. Quem nao ficaria azuretado com semelhante desproposito? Nao queria capacitarse de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Nao era senao isso.

Entao porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, da-se pancada nele? Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violencias, a todas.

as injusticas. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipo de boi oferecia consolacoes: -- "Tenha paciencia. Apanhar do governo nao e desfeita.&8221; Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? - An! E, por mais que forcejasse, nao se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, nao podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, alem da grade,. era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo nao devia consentir tao grande safadeza.

Afinal para que serviam os soldados amarelos? Deu um pontape na parede, gritou enfurecido. Para que serviam os soldados amarelos? Os outros presos remexeram-se, o carcereiro chegou a grade, e Fabiano acalmou-se: - Bem, bem. Nao ha nada nao.

Havia muitas coisas. Ele nao podia explica-las, mas havia.

Fossem perguntar a seu Tomas da bolandeira, que lia livros e sabia onde tinha as ventas. Seu Tomas da bolandeira contaria aquela historia. Ele, Fabiano, um bruto, nao contava nada. So queria voltar para junto de Sinha Vitoria, deitar-se na cama de varas. Porque vinham bulir com um homem que so queria descansar? Deviam bulir com outros.

- An! Estava tudo errado.

- An! Tinham la coragem? Imaginou o soldado amarelo atirando-se a um cangaceiro na catinga. Tinha graca. Nao dava um caldo.

Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras. Sinha Vitoria punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal nao se tinha perdido. Bem. Sinha Vitoria provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da familia, sabida como gente. Naquela viagem arrastada, em tempo de seca braba, quando estavam todos morrendo de fome, a cadelinha tinha trazido para eles um prea. Ia envelhecendo, coitada.

Sinha Vitoria, inquieta, com certeza fora muitas vezes escutar na porta da frente. O galo batia as asas, os bichos bodejavam no chiqueiro, os chocalhos das vacas tiniam.

Se nao fosse isso ... An! Em que estava pensando? Meteu os olhos pela grade da rua. Chi! que pretume! O lampiao da esquina se apagara, provavelmente o homem da escada so botara nele meio quarteirao de querosene. Pobre de Sinha Vitoria, cheia de cuidados, na escuridao. Os meninos sentados perto do lume, a panela chiando na trempe de pedras, Baleia atenta, o candeeiro de folha pendurado na ponta de uma vara que saia da parede.

Estava tao cansado, tao machucado, que ia quase adormecendo no meio daquela desgraca. Havia ali um bebedo tresvariando em voz alta e alguns homens agachados em redor de um fogo que enchia o carcere de fumaca. Discutiam e queixavam-se da lenha molhada.

Fabiano cochilava, a cabeca pesada inclinava-se para o peito e levantava-se. Devia ter comprado o querosene de seu Inacio. A mulher e os meninos aguentando fumaca nos olhos.

Acordou sobressaltado. Pois nao estava misturando as pessoas, desatinando? Talvez fosse efeito da cachaca. Nao era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se lhe dessem tempo, contaria o que se passara.

Ouviu o falatorio desconexo do bebedo, caiu numa indecisao dolorosa. Ele tambem dizia palavras sem sentido, conversava a toa. Mas irou-se com a comparacao, deu marradas na parede.

Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, nao sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Entao mete-se um homem na cadeia porque ele nao sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava os animais - aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha culpa? Se nao fosse aquilo ... Nem sabia. O fio da ideia cresceu, engrossou - e partiu-se. Dificil pensar. Vivia tao agarrado aos bichos. .. Nunca vira uma escola. Por isso nao conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demonio daquela historia entrava-lhe na cabeca e saia. Era para um cristao endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria meio de entende-la. Impossivel, so sabia lidar com bichos.

Enfim, contanto ... Seu Tomas daria informacoes. Fossem perguntar a ele. Homem bom, seu Tomas da bolandeira, homem aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era aquilo mesmo, um bruto.

O que desejava ... An! Esquecia-se. Agora se recordava da viagem que tinha feito pelo sertao a cair de fome. As pernas dos meninos eram finas como bilros, Sinha Vitoria tropicava debaixo do bau de trens. Na beira do rio haviam comido o papagaio, que nao sabia falar. Necessidade.

Fabiano tambem nao sabia falar. As vezes largava nomes arrevesados, por embromacao. Via perfeitamente que tudo era besteira. Nao podia arrumar o que tinha no interior. Se pudesse ... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas.

Bateu na cabeca, apertou-a. Que faziam aqueles sujeitos acocorados em torno do fogo? Que dizia aquele bebedo que se esgoelava como um doido, gastando folego a toa? Sentiu vontade de gritar, de anunciar muito alto que eles nao prestavam para nada. Ouviu uma voz fina. Alguem no xadrez das mulheres chorava e arrenegava as pulgas. Rapariga da vida, certamente de porta aberta. Essa tambem nao prestava para nada. Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao doutor juiz de direito, ao delegado, a seu vigario e aos cobradores da prefeitura que ali dentro ninguem prestava para nada. Ele, os homens acocorados, o bebedo, a mulher das pulgas, tudo era uma lastima, so servia para aguentar facao.

Era o que ele queria dizer.

E havia tambem aquele fogo-corredor que ia e vinha no espirito dele. Sim, havia aquilo. Como era? Precisava descansar. Estava com a testa doendo, provavelmente em consequencia de uma pancada de cabo de facao. E doia-lhe. a cabeca toda, parecia-lhe que tinha fogo por dentro, parecialhe que tinha nos miolos uma panela fervendo.

Pobre de Sinha Vitoria, inquieta e sossegando os meninos.

Baleia vigiando, perto da trempe. Se nao fossem eles ...

Agora Fabiano conseguia arranjar as ideias. O que o segurava era a familia. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourao, suportando ferro quente. Se nao fosse isso, um soldado amarelo nao lhe pisava o pe nao. O que lhe amolecia o corpo era a lembranca da mulher e dos filhos. Sem aqueles camboes pesados, nao envergaria o espinhaco nao, sairia dali como onca e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pe de pau no soldado amarelo. Nao. O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mao. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Nao ficaria um para semente. Era a ideia que lhe fervia na cabeca. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.

Fabiano gritou, assustando o bebedo, os tipos que abanavam o fogo, o carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas.

Tinha aqueles camboes pendurados ao pescoco. Deveria continuar a arrasta-los? Sinha Vitoria dormia mal na cama de varas. Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando crescessem, guardariam as reses de um patrao invisivel, seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado amarelo.

Capitulo IV - Sinha Vitoria ACOCORADA junto as pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, Sinha Vitoria soprava o fogo. Uma nuvem de cinza voou dos ticoes e cobriu-lhe a cara, a fumaca inundou-lhe os olhos, o rosario de contas brancas e azuis desprendeu-se do cabecao e bateu na panela. Sinha Vitoria limpou as lagrimas com as costas das maos, encarquilhou as palpebras, meteu o rosario no seio e continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.

Labaredas lamberam as achas de angico, esmoreceram, tornaram a levantar-se e espalharam-se entre as pedras. Sinha Vitoria aprumou o espinhaco e agitou o abano. Uma chuva de faiscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanacoes da comida.

Sentindo a deslocacao do ar e a crepitacao dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pelo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chao. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenomeno e desejou expressar a sua admiracao a dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas Sinha Vitoria nao queria saber de elogios.

- Arreda! Deu um pontape na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionarios.

Sinha Vitoria tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de proposito, dissera ao marido umas inconveniencias a respeito da cama de varas. Fabiano, que nao esperava semelhante desatino, apenas grunhira: - "Hum! hum!" E amunhecara, porque realmente mulher e bicho dificil de entender, deitara-se na rede e pegara no sono. Sinha Vitoria andara para cima e para baixo, procurando em que desabafar. Como achasse tudo em ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se em Baleia, dando-lhe um pontape.

Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos, entretidos no barreiro, sujos de lama, fabricando bois de barro, que secavam ao sol, sob o pe de turco, e nao encontrou motivo para repreende-los. Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradavel dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas.

Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a principio concordara com ela, mastigara calculos, tudo errado. Tanto para o couro, tanto para a armacao. Bem.

Poderiam adquirir o movel necessario economizando na roupa e no querosene. Sinha Vitoria respondera que isso era impossivel, porque eles vestiam mal, as criancas andavam nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, nao se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando cortar outras despesas. Como nao se entendessem, Sinha Vitoria aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo marido na feira, com jogo e cachaca. Ressentido, Fabiano condenara os sapatos de verniz que ela usava nas festas, caros e inuteis. Calcada naquilo, tropega, mexia-se como um papagaio, era ridicula. Sinha Vitoria ofendera-se gravemente com a comparacao, e se nao fosse o respeito que Fabiano lhe inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal, tropecava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo.

Devia ser ridicula, mas a opiniao de Fabiano entristecera-a muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado.

Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingivel e misturava-a as obrigacoes da casa. Foi a sala, passou por baixo do punho da rede onde Fabiano roncava, tirou do carito o cachimbo e uma pele de fumo, saiu para o copiar. O chocalho da vaca laranja tilintou para os lados do rio. Fabiano era capaz de se ter esquecido de curar a vaca laranja.

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