Graciliano Ramos - Resumo Memorias do Carcere - Parte II

02/12/2012 10:59

 

Graciliano Ramos

TERCEIRA PARTE

COLÔNIA CORRECIONAL

1

ENTRAMOS num salão bastante limpo, de pintura nova, ainda com cheiro de tinta fresca, mas desprovido inteiramente de móveis. Era o Pavilhão dos Militares. O chão liso, as paredes nuas valorizavam demais o conforto escasso perdido uma hora antes: o colchão magro, a cama dura, o guarda-vento. Iríamos para a Colônia? Essa pergunta muitas vezes se repetiu; uns aos outros os homens em redor avivavam receios, queriam suprimi-los, enquanto se ambientavam, de cócoras pelos cantos, sentados nas bagagens. Macedo não tinha dúvida. Iríamos, claro. Dizia isso tranqüilo, indiferente à miserável perspectiva, arrumando os troços com pachorra, a concentrar o engenho no problema de armar a rede. Trouxeram-nos esteiras e lençóis. Bem. Davam-nos agasalhos, a situação era melhor que nas prisões das galerias, molhadas, cheias, a gente mal conseguindo estirar-se no espaço exíguo.

Despi-me, busquei nos muros um prego que me servisse de cabide; em falta disto, dobrei a roupa, coloquei-a em cima do chapéu de palha. Retirei da maleta o pijama, vesti-me, arriei na esteira a carcaça, junto à porta, Macedo abriu o saco de lona e ofereceu-me um travesseiro. Homem arrumado e previdente. Com o saco de lona parecia fazer mágicas: extraía dele os objetos necessários e requintes de luxo, até fronhas. Agora exteriorizava contentamento: achara meio de pendurar a rede entre duas grades. Sentou-se nela e acendeu o cachimbo. Tentei repousar, mas um burburinho confuso e as idéias fragmentárias impediam-me o sono. Impossível conservar-me em posição horizontal. Ergui o espinhaço, encostei-me à parede, entretive-me a examinar os companheiros; contei-os várias vezes, sem atinar com o número certo; mexiam-se demais, entregues à arrumação, e atrapalhavam-me a contagem.

Findos os arranjos, atenuada a lufa-lufa, convenci-me afinal de que éramos dezessete pessoas, cinco nordestinos e doze paranaenses. Fixei a atenção nestes, quase todos rapagões fortes e brancos, já percebidos vagamente no andar térreo do Pavilhão dos Primários, envoltos em largos sobretudos espessos. Tinham prosódia esquisita, e sobrenomes exóticos feriam-me os ouvidos: Petrosky, Prinz, Zoppo, Garrett, Cabezon. A minoria, vulgar e mais ou menos cabocla, usava designações caseiras, expressas na fala arrastada, familiar no porão do Manaus, quatro meses atrás: Guerra, Macedo, João Rocha, José Gomes.

Entre os sujeitos ali reunidos, atentei num velho encorpado, vermelho, de óculos, muito sério, visto dias antes na fila, à hora da bóia. Conversamos essa noite, e descobri que ele se notabilizava por vários motivos: falava polaco, citava com abundância versículos da Bíblia e era danadamente reacionário. Precisava desabafar e segredou-me confidências: fora preso por engano; sim senhor, engano, calúnia de inimigos. Via em mim uma pessoa de consideração - e julgava por isso que não iríamos para a Colônia Correcional. Chamava-se apenas Eusébio. Tinha um cargo público (ou não tinha: provavelmente o haviam demitido) e era pequeno proprietário. Em desassossego, evitando convivências prejudiciais, buscava no ambiente insalubre um homem de posses, conservador, esforçava-se por segurar-se a ele e tranqüilizar-se. Iriam mandar-nos para a Colônia Correcional? E porquê? Francamente, seria possível que nos mandassem para lá? A viagem me parecia certa - e o velho Eusébio desesperava. Não senhor, grunhia aflito e encatarroado. Não nos fariam semelhante desacato. Arregalava os olhos, querendo enxergar em mim qualquer coisa além das aparências, elevar-me e salvar-se: - Uma pessoa de consideração.

Desenganei-o. Conhecendo-me a pobreza, desanimou, sentiu-se desamparado. Extinta a fugidia importância, em vão buscava em roda um sustentáculo, o ar de cólica, o sorriso mofino, uma longa tremura a envolver-se no capote. No descampado social nenhuma saliência. E a criatura infeliz continuou a chatear-me remoendo o seu caso, arrepiando-se em cochichos por ver-se misturado a indivíduos suspeitos. Vivera sempre longe de confusões, gemia fanhoso, terminando os períodos numa interjeição demorada e asmática - "An!" Explicava-se, defendia-se, pegando-se à religião, utilizando pedaços do Velho Testamento, como se isto lhe proporcionasse vantagem. Apesar da minha franqueza, teimava em não julgar-me inteiramente pobre. E afastou-se rosnando com segurança fraca: - Uma pessoa de consideração. Acha que mandam? L impossível. An! Essa despedida não me trouxe o isolamento necessário ao arranjo das idéias e ao sossego. As idas e vindas no cubículo, à toa, a ouvir palavras sem nexo, a procura de objetos miúdos na arrumação da bagagem, a dificuldade em amarrar a gravata e calçar-me, enfim a mudança de gaiola tinham-me fatigado em excesso. Que distância havíamos percorrido? Cem metros, duzentos, no máximo uns trezentos. Isso me parecia uma caminhada extensa, e o meio novo, as fisionomias indistintas, vozes a confundir-se exigiam-me grande esforço para simular calma, apreender a significação de uma pergunta e dar a resposta conveniente. A covardia obtusa do velho Eusébio causava-me desgosto profundo. Largos dias, talvez meses, as lamúrias bambas iriam importunar-me, endurecer-me o coração. Nenhuma simpatia, absoluta ausência de piedade. Receava impacientar-me, suprimir com raiva as lamentações pegajosas que nos sujavam, lavar-me delas. Queria dormir, mas sempre estavam a reclamar-me a atenção. A imobilidade e o silêncio adquiriam de repente enorme valor. Dificuldade pensar, e obrigavam-me a isto.

Um paranaense loquaz avizinhou-se, entabulando camaradagem fácil, esteve meia hora a narrar-me as divergências existentes no seu grupo, intelectuais de um lado, operários de outro, abominando-se ou desprezando-se. A curiosa revelação desanuviou-me um instante e despertou ligeira curiosidade. Intelectuais? Que diabo significava isso? Inteirei-me a custo. Designavam-se desse jeito os indivíduos alheios a qualquer ofício manual: Herculano, estudante de músculos débeis e rosto enxofrado, o velho Eusébio, alguns pequenos funcionários de uma estrada de ferro. Mais essa. Iam forçar-me a conviver, tempo indeterminado, com pessoas que se justapunham, sem chegar a entender-se. Não me eximiria de muitos erros: certamente esqueceria as diferenças e a minha linguagem feriria susceptibilidades.

A fadiga me entorpecia a carne, mas o fervedouro de pensamentos desconexos não me deixaria repousar. Livre do informante, alonguei-me na esteira, fechei os olhos, envolvi me no lençol curto demais. Os pés ficaram descobertos, o ar frio da noite picava-me as orelhas. Encolhi-me, tentei defender-me das ferroadas penetrantes, vencer os arrepios. A umidade atravessava o tecido fino, e não havia meio de aquietar-me. Escolhera por desgraça o pior lugar, junto à grade; um ventinho insinuante e velhaco trazia-me a garoa de julho. Se o esgotamento não me prendesse, iria alojar-me noutra parte. Nem me lembrei disso, provavelmente, e na sala não havia canto disponível.

Descerrando as pálpebras pesadas, inteirava-me de minúcias que não se articulavam; o conjunto era uma aglomeração de tipos reconhecíveis um instante e logo a esfumar-se em neblina; envoltórios de redes e capotes davam-lhes a feição vaga de fardos instáveis. A fraqueza visual impedia-me identificar as pessoas mais distantes. Necessário usar óculos quando me soltassem: à luz escassa dos cubículos, durante alguns meses as letras haviam dançado no papel. Falas vagarosas me arrastavam de chofre ao porão do Manaus, e três figuras ressurgiam: João Rocha, o pequeno dentista Guerra, José Gomes. De que modo iria comportar-se o pobre Guerra, dias antes acometido por um acesso de terror, a urinar-se e a tremer, querendo a presença de mamãe? Garrett e Petrosky, encostados ao muro, estavam silenciosos e carrancudos. Tinham esses nomes, sem dúvida, mas não consegui saber qual dos dois era Garrett, qual era Petrosky. Incomodavam-me as frases soltas, para mim vazias como tagarelar de papagaios. Descobri aos poucos sentido nelas: os operários arredavam preocupações contando anedotas escabrosas. José Gomes ria-se demais das próprias histórias, repisando minúcias, como se desconfiasse da inteligência dos outros. Não alcançando o resultado previsto, de nenhum modo se alterava: divertia-se imenso com as narrativas insípidas. A gente do sul procedia de igual maneira, pouco lhe importando o juízo do auditório. A ausência de espírito, a monotonia, a pobreza de concepção, a linguagem perra, tudo indicava falta de exercício mental, insinuava-me cautela, a precisão de acomodar-me ao conceito simples e direto: um paradoxo ali originaria incompatibilidades inevitáveis. Desagradável naquele meio o diálogo curto que tive com um trabalhador. O homem falava-me nas vantagens da autocrítica. E eu, sem refletir: - "Exato. Devo conhecer os meus defeitos, para conservá-los todos com muito cuidado." Surpresa viva, interjeições - e este desgraçado remate incompreensível ao interlocutor honesto: - "Claro. Se os meus defeitos se sumirem, deixarei de ser eu, mudar-me-ei noutro. Quero guardá-los, não perder um." Opiniões desse gênero alarmariam as criaturas singelas ocupadas em remoer facécias estultas.

Súbito uma pilhéria cheia de sal arrancou-me uma gargalhada, abriu-me os olhos, virou-me na esteira, ergueu-me sobre o cotovelo. Fora Cabezon que me provocara esses movimentos, o indivíduo a quem davam tal nome, com certeza um dos intelectuais mencionados pouco antes, amanuense oficial administrativo, ou funcionário pequeno de uma estrada de ferro. A situação dele era mais ou menos igual à minha. Revelava-se num trocadilho obsceno, mas isto não causou grande efeito na assistência. Os casos insulsos continuaram. O velho Eusébio tentava levar a conversa para assuntos graves. E Macedo, balançando-se na rede, cachimbava e sorria.

2

NO DIA seguinte pela manhã, Herculano trepou-se a uma janela e, agarrado aos varões, ficou lá de poleiro como papagaio, buscando entender-se com as outras celas. Gritos nos deram a notícia de que uma turma viera dias antes da Colônia e estava ali perto. Desejei saber os nomes dos recém-chegados; como a voz fraca me impedia comunicação, o estudante amarelo encarregou-se de transmitir a pergunta. Berraram-nos uma lista, abafada e incompleta; algumas pessoas reduziam-se a sílabas escassas, não havia meio de reconhecê-las; quatro ou cinco surgiam claramente, quase todas enviadas na primeira leva, naquela noite em que Desidério levantava o braço com raiva, entortando mais o bugalho vesgo, e Tamanduá se empavonava, metido no poncho vermelho.

Trouxeram-nos o café, muito ralo, e um pão sem manteiga. Aí notaríamos uma advertência, se ela fosse precisa. O pão era exatamente igual ao fornecido no Pavilhão dos Primários, mas tiravam-nos o pouco de manteiga rançosa, obrigatória lá. Com certeza não procediam assim por economia: a supressão visava a um fim, aliava-se às esteiras, ao ajuntamento em local exíguo, aos lençóis curtos e finos em tempo frio, a indicar-nos uma degradação. Iam impor-nos outras mudanças, apagar de chofre os restos de conforto ainda conservados na véspera e forçar-nos a contrair novos hábitos. Esses choques nos perturbam em demasia, e o pior é não sabermos até onde nos levarão: a instabilidade nos impede entrever qualquer limite.

Mandei comprar pelo faxina um litro de leite. Dias compridos o meu alimento seria esse litro de leite, o pão e alguns canecos da lavagem turva, de gosto adocicado, que eu insistia em beber, esquecendo o aviso misterioso de um preso velho e experiente. Em geral nos davam essa refeição com a porta fechada: o bico do bule se encostava a uma travessa, estirávamos os canecos e recebíamos os pães através dos ferros. Nos cubículos era assim que faziam. Mas naquela manhã destrancaram inopinadamente a grade, os faxinas entraram com o saco de pães e o vaso enorme de folha, e o guarda nos permitiu andar no pátio.

Engoli o café, abalamos todos em busca do Pavilhão onde se aboletavam refugos da Colônia. Encontrei um bando a comprimir-se numa abertura estreita, e nos espaços que havia entre os corpos surgiam rostos magros e desbotados. Outras fileiras deviam empurrar-se, invisíveis, pois do fundo, escuro, fumacento e fuliginoso, partiam vozes percebidas em qualquer parte. Os homens da frente, quase nus, cabeças lisas, tinham muita sujeira, muita amarelidão, órbitas cavadas, bochechas murchas. Deixavam provavelmente a enfermaria. A primeira vista não reconheci nenhum. Quando principiaram a falar, depressa, em desordem, como se o tempo não desse para todos, fui notando aqui e ali sinais guardados inconscientemente. Sorriam, descobrindo as gengivas pálidas. O esqueleto que o moço da rouparia tinha no punho voltou-me ao espírito. Os ácidos não haviam desfeito a medonha tatuagem. Por cima da cicatriz que repuxava a pele e se estendia num desenho róseo, sobressaíam costelas, vértebras, o riso da caveira. As figuras estranhas apinhadas ali riam. Riam para mim, como se eu fosse uma carcaça também. Quantos meses fazia que tinham vivido comigo no Pavilhão dos Primários? Dois meses. Era, dois meses, pouco mais ou menos. E estavam assim. Talvez ignorassem que estavam assim. Estremeci. Não me acharia daquele jeito? Olhei o pijama curto e rasgado. Ultimamente dormia pouco, alimentava-me com dificuldade. Extingui a comparação desagradável. Farrapos. Regressavam da Colônia, farrapos. Iriam reconstituir-se, renascer, mas ali eram farrapos. Examinei-os. Bem. Aquele devia ser o Newton Freitas, o camarada alegre e ruidoso que no Pavilhão soltava risadas enormes, com ou sem propósito. Era ele, pensei descobrindo nos ossos do rosto lívido sinais do antigo Newton. Sem dúvida, lá vinha a gargalhada, uma fria gargalhada sem ânimo. E o sujeito baixo, de cuecas, barbudo em excesso, a mexer as mandíbulas com jeito de caititu? Seria o Pessoa? Com os diabos! Anastácio Pessoa, tipo neutro, alheio à questão social, posto em liberdade, supúnhamos. Inofensivo e discreto. - Você também, Pessoa? Recordei-me dele, vi-o na fila, manejando um romance inglês, à espera da comida, num apuro escandaloso. Não se decidia a vestir pijama, nivelar-se aos outros, pois ia de morar pouco entre nós. Um equívoco, tinham-no agarrado por engano. Com certeza iam chamá-lo, explicar-se, mandá-lo embora, com desculpas. E nesta convicção isolava-se, de meias, sapatos lustrosos, calça de casimira, suspensório, camisa de seda e gravata. Havia de ficar ali sem saber porquê? Saíra - e por isto recebera abraços e parabéns. Agora voltava da Colônia Correcional sujo, magro, hirsuto, de cueca e tamancos. No risinho insignificante e nos modos encolhidos logo distingui Bagé. O nome dele me surgira pela primeira vez na galeria. Distraía-me a olhar as paredes e o teto, um dos poucos meios de encher o tempo ali. As paredes estavam cobertas de inscrições e desenhos; no teto oscilavam penduricalhos feitos com essas lâminas finas de metal usadas em carteiras de cigarros. No meio dos letreiros, alto, onde não chegava braço de homem, uma lista de presos, em tinta azul. Embaixo, uma data e o motivo da prisão. Alguns indivíduos expostos no rol tinham-me aparecido mais tarde. Numerosas voltas e viravoltas arbitrárias - e diante de nós se achavam dois: Bagé e Medina. Também reconheci Agrícola Baptista, o Tamanduá, que, em briga da Coluna Prestes, recebera uma bala na perna e claudicava. Um guarda veio abrir a porta, reunimo-nos à sombra de uma árvore no pátio. E as notícias choveram, em pedaços, de cambulhada.

- Bichos, exclamou Tamanduá. Vivemos como bichos.

Um Tamanduá diferente, sórdido e escuro, sem a cabeleira arrepiada. E o poncho, que fim levara o poncho vermelho, afrontoso e ostensivo como bandeira de guerra? - Num curral de arame farpado, como bichos, prosseguiu Tamanduá.

Disse mais coisas a respeito de latrinas, banheiros, disenteria e falta de papel, mas o rebanho de criaturas humanas em curral de arame farpado buliu comigo e afastou o resto da exposição. As minúcias embaralhavam-se, perdiam-se.

- Para onde vão mandar vocês? perguntou Medina. Para a Colônia, evidentemente; isto me parecia claro. Medina espalhou a vista em redor, analisou-me a cara, refletiu e moveu a cabeça discordando: não nos meteriam na Colônia. Aborreci-me. Quereria tapear-nos com emolientes? De nenhum modo; interpretei mal as disposições do moço: não nos enviariam à ilha Grande, infelizmente. Procurou exibir-me a vantagem de permanecer lá umas semanas.

- Não digo meses, que você não agüentaria. Algumas semanas apenas. Muito instrutivo.

Era um rapaz frio, risonho, desdentado. No Pavilhão dos Primários tinha uma cabeleira vasta e barba longa, mas isto desaparecera. A boca murcha dava-lhe um ar insignificante e avelhantado.

- Boa experiência, creia; material abundante. Seria magnífico você estudar aquilo.

Em seguida à estridência e aos arrepios de Tamanduá, não me entusiasmei com as palavras de Medina; achei-as realmente absurdas: se resolvessem matar-me, a abundância de material seria inútil. Newton Freitas anunciou o propósito de narrar em livro a viagem no porão do Campos. Excelente idéia. Eu é que não tinha desejo nenhum de escrever. O guarda surgiu com o molho de chaves. Fizemos as despedidas e novamente nos trancaram.

3

AGORA na prisão havia mais espaço: deixaram aberta uma grade e nosso mundo se estendeu alguns metros, pudemos andar na sala vizinha. Estive ali parte do dia, a contar os passos de uma a outra parede, a imaginação presa no curral de arame, as palavras insensatas de Medina fervilhando-me na cabeça. Esforçava-me por varrer essas coisas aflitivas, um minuto conseguia amortecê-las, embalar-me numa vaga impressão de esquecimento; logo se reavivavam, eliminando recordações, a insinuar-se nos fatos da vida nova. Caso singular: a desgraçada perspectiva me dava prazer. Não era talvez isso, pois ao mesmo tempo sentia o coração desmaiar numa espécie de angústia, e alarmava-me servir de campo ao medonho jogo de emoções incompatíveis. As notícias me arrefeciam, animavam terrores latentes, e em vão queria livrar-me de uma horrível curiosidade malsã. Na verdade Medina tinha razão: pus-me a afirmar isto sabendo que afirmava uma estupidez: as minhas observações no lugar infame não valeriam nada. Mas a sujeira imensa, a disenteria, a falta de água, um milheiro de homens a apertar-se num curral de arame não me deixavam sossegar. Aquilo merecia ser visto, pelo menos serviria para indicar a nossa resistência, de algum modo fortalecer-nos. Havia nesse desejo mórbido quase um desafio aos maus tratos, às humilhações, e se de repente nos largassem na rua, nem sei se me consideraria em liberdade ou vítima de um logro.

O velho Eusébio veio trazer-me a sua camaradagem mofina, entrou a passear comigo, a voz bamba a sumir-se na pergunta ansiosa mastigada na véspera. Estivera no pátio, debaixo da árvore, os olhos e os ouvidos atentos, e os molambos de esperança guardados preciosamente iam-se esgarçando.

- Nós vão mandar para a Colônia? Será possível? Novamente a confusão pronominal, observada no Pavilhão, me chocou; não havia de acostumar-me ao diabo da sintaxe encrencada. Isso jugava-se aos receios e à moleza da criatura, aos gestos ambíguos, às citações do Velho Testamento, e uma forte repulsa me enchia o coração. Impacientei-me, acho que fui grosseiro; nenhuma piedade me levava a minorar os sustos do menino grisalho. Respondi com monossílabos ásperos, continuando a absorver-me nas impressões de Tamanduá, na extravagância de Medina. Restar-me-iam forças para agüentar-me na piolheira infame? Essa pergunta já me viera ao pensamento ao aniquilar-me no porão do Manaus, respirando a custo, andando sobre porcarias, meio desfeito em suor no calor de fornalha. Na primeira noite julgara-me perto de enlouquecer; depois me habituara: uma semana a ver as algas pela vigia, trepado numa costela do cavername; a fumar na rede presa à boca da escotilha; a redigir notas a lápis no camarote do padeiro. A gente se acostuma depressa às mais inesperadas situações. O que me alarmava era ter vivido muitos dias em jejum. Provavelmente ia agora suceder o mesmo; enjôo à comida, a língua seca, os beiços a rachar; o estômago já se entorpecia, como a bordo. Certamente me acabaria de inanição.

- Sim. É. Claro. O senhor tem dúvida? Essas concisões faziam brechas na arrepiada lengalenga do paranaense, queriam destruí-Ia, mas o esguicho de lamúrias não cessava, atingia-me, dissolvendo-me a estranha demência. Idiota. Nenhum sujeito normal deseja rebaixar-se e arriscar-se a morrer de fome. Que me importavam as figuras tristes consumidas no curral de arame? Preferível não conhecê-las. Para quê? Ladrões, vagabundos, malandros. Tinha-me arrastado mais de quarenta anos longe deles, sem cogitar da existência deles, e surgia-me de chofre a necessidade besta de uma aproximação inútil. Idiota. Injuriava-me por dentro, mas a zanga exterior convergia para o velho Eusébio, revelada nas sílabas cortantes:

-- Isso. Pois não. Claro, claro. Todos. Não está vendo? Receava exceder-me, engolia impropérios. Afastei-me, a arrasada personagem me seguiu ronronando o seu caso, inocentando-se. Desculpava-se usando o plural, envolvendo-me na justificação. Havia qualquer suspeita contra nós? Não havia. Tínhamos entrado em desordem? Não tínhamos. Éramos inimigos de barulhos. E então? Porque estávamos ali? Hem? E porque essa história de Colônia Correcional? Os lamentos enfureciam-me, atazanava-me por evitá-los; a maneira hostil e as passada largas frustravam-se: em qualquer parte achava-se ao pé de mim a sombra queixosa. Essa convivência de naturezas inconciliáveis, prolongando-se, chega a ser tortura, e explica brutalidades, rompantes de que não nos julgamos capazes e nos envergonham.

Afinal, depois de muitos ziguezagues nas duas salas, refugiei-me num vão de porta, busquei distrair-me olhando o pátio, jogando miolo de pão às aves residentes na árvore próxima. Eram pardais sem conta e devoravam tudo com rapidez enorme. Algum tempo isolei-me; o rumor das asas, os chilros e o verde-claro dos ramos na manhã luminosa acalmaram-me. Vencidas as idéias malucas, resolvi descansar na esteira, decifrar a conversa dos operários, mas não consigo lembrar-me do que eles diziam. Os pardais tinham-me dado uma tranqüilidade aparente. Levantava-me, deitava-me, bebia goles de leite e canecas do pretume doce e repugnante que o faxina vendia à grade. O futuro já não me inquietava; esvaíam-se as tremuras do velho Eusébio, o desconchavo de Mediria, e a viagem para a Colônia deixava-me indiferente; impacientava-me, porém, ficar sentado, imóvel, na incerteza. Difícil desenovelar tais incongruências. Experimentamos isto, suponho: os acontecimentos de amanhã não nos interessam, são como se se referissem a outra pessoa; hoje não encontramos paz, as horas longas enchem-se de fatos desagradáveis, necessitamos fingir paciência e isto cada vez mais nos enerva.

Herculano, em rápida arenga, despertou-me a atenção. Arrolou as nossas dificuldades, exprimiu a conveniência de mutuarmos auxílio e acabou sugerindo que esvaziássemos os bolsos, contássemos o dinheiro e o dividíssemos eqüitativamente. A inesperada proposta não causou entusiasmo. O velho Eusébio franziu o nariz e arredou-se; os homens da estrada de ferro e os operários fizeram-se desentendidos; os nordestinos encolheram-se reprovando. Ante a negativa fria e silenciosa, chamei de parte o estudante: - Ó Herculano, se não é indiscrição, quanto é que você possui? - Eu? Nada, cochichou o rapaz. Tinha vinte mil-réis, que perdi no jogo.

Diabo! Um truque infantil. E eu havia ganho a pobre cédula do companheiro, deixando-o mais fraco e mais pálido. - Porque não me disse, homem? Dei-lhe esse prejuízo, sem querer.

Abri o porta-níqueis, retirei uma das poucas notas lá escondidas: - É uma restituição. Talvez seja a mesma que recebi naquela noite.

Aliviada a consciência, pus em ordem os meus troços, coloquei-os junto à esteira, ao alcance do braço, o chapéu em cima da valise, a roupa dobrada em cima do chapéu. As notas redigidas em vários meses davam-me receio. Apesar dos longos intervalos de marasmo e preguiça, alargavam-se em quarenta ou cinqüenta páginas cobertas de letra miúda, as linhas tão próximas que as emendas se tornavam impossíveis. Ocultavam-se entre cuecas e lenços, mas com certeza não conseguiriam entrar na Colônia. Não cabiam dentro dos sapatos; imaginei guardá-las por baixo da camisa, enfaixar as pernas com elas; necessitava barbante para amarrá-las. Escapariam à revista? Os diálogos em roda iam-me descobrindo alguns indivíduos. Petrosky era o sujeito louro, grande, forte, de rosto severo. O moço de cabeça redonda e fala doce e engrolada chamava-se Zoppo. Como se arranjaria na viagem desgraçada o pequeno dentista Guerra? Um dia caíra da cama, esperneara gritando por mamãe. Coitado. Iam arrasá-lo. Agora havia sossego no pátio; o calor e a claridade recolhiam entre ás folhas os pássaros mudos.

Um guarda de olhar manhoso destrancou a porta e os faxinas entraram com o almoço Fugi, um aperto na garganta, examinei o exterior deserto, para não ver a comida, não podia evitar o cheiro dela, e a náusea me atormentava. Sensação igual à experimentada meses atrás, no porão do Manaus. A língua seca, os beiços iam rachar-se, a ponta do cigarro se colaria à pele sangrenta. Agachados nas esteiras, diversos homens sentiam prazer em mastigar, e o apetite deles me causava uma estranha indignação. O som das colheres nas marmitas feria-me os ouvidos, era insuportável.

4

PASSOU-SE o dia, outros dias se passaram, quatro ou cinco, talvez mais. Uma notícia entrou a circular: embarcaríamos para o sul. Os paranaenses, em maioria, admitiram logo o boato, sem procurar saber quem o trouxera. Ninguém, provavelmente; originara-se ali, mas o curso, a repetição, complementos anônimos, davam-lhe prestígio, mudavam-no quase em certeza, e Petrosky, Zoppo, Cabezon, Garrett esperavam ler num jornal impossível a passagem de um navio para o sul. Guerra, José Gomes e Rocha tinham a certeza de que viajaríamos para o norte. Esforçava-me por fechar os ouvidos e isolar-me, e não conseguia deixar de contaminar-me, ver nos desejos ambientes realidades possíveis, aceitar a informação chegada a nós sem veículo, atravessando muros. Essa credulidade me desgostava; busquei afastá-la pensando em Sebastião Félix, mudo e sombrio, ausente do mundo, em contato com os espíritos num cubículo do Pavilhão dos Primários. Deixava-me levar, contra vontade; as fisionomias mostravam convicção, e por minutos incorporava-me a um dos grupos. Em seguida reagia, certamente por não querer deslocar-me para cima ou para baixo. Não me tentava o regresso à minha terra. E que diabo iria fazer no Paraná? Livre do contágio, Macedo sorria e cachimbava na rede, falava sobre a permanência na Colônia, sereno, como se isto figurasse nos seus planos. Continuava a servir-me do travesseiro dele, macio, de penas, mas tão miúdo que, para erguer a cabeça, tive de colocá-lo em cima da valise. A calça e o paletó, dobrados, formando um volume pequeno, ficaram sobre o chapéu de palha, junto à parede. Não me incomodava a aspereza da esteira, mas, na friagem da noite, enrolando-me no lençol curto, adormecia, acordava, as orelhas e as mãos geladas. Arrepios, desânimo na carne. A apatia sexual, notada meses atrás, depois esquecida, novamente me causava surpresa. Tentei vencê-la enchendo as horas de insônia com cenas lúbricas; isto se convertia depressa num exercício mental penoso, e era como se me faltassem partes do corpo. A lembrança das mulheres não me dava nenhum prazer. Porque me havia aparecido aquilo de repente? Chegara-me a impotência completa. Bem; se fosse definitiva, não valia a pena mortificar-me; iria talvez eximir-me de excessivos tormentos, da horrível necessidade insatisfeita, que me perturbava o trabalho. Iria comportar-me direito, como um frade, relacionar idéias fugitivas, obrigá-las à disciplina; as histórias se arrumariam no papel sem as freqüentes suspensões inevitáveis. Para ser franco, esse entorpecimento me agradou; se não fosse ele, a reclusão demorada se tornaria dolorosa em extremo. E continuei a beber café, muitas canecas de café, não percebendo nisto sombra de inconveniente.

Das funções orgânicas permitiam-nos apenas assimilar, desassimilar. Abundante e ruim, a comida nos chegava em marmitas de folha amolgada, a empanturrar um caixão que varais ladeavam. Agarrando esses apêndices, os faxinas do transporte pareciam animais atrelados a uma liteira. Grandes nacos de carne, farinha de mandioca e arroz, de mistura nas gamelas sujas, causavam repugnância. Com o material existente ali um cozinheiro teria podido sem esforço arranjar pratos regulares. Desperdício e desleixo. Convidavam-me em redor, insistiam, afirmando que a bóia não tinha mau gosto, mas a minha fraqueza arrepiada contentava-se com o pão seco oferecido pelo governo e um litro de leite comprado por mim. Ao cabo da refeição gorda, os homens se estiravam nas redes, nos capotes, ressonavam pesada sesta. A um canto, à esquerda, não longe da porta, duas paredes baixas angulavam, formando um compartimento exíguo, que escondia a latrina e uma torneira. A carência de pia tornava as mais simples necessidades de higiene muito difíceis.

Uma tarde, ao cair da noite, subitamente nos achamos em situação embaraçosa; diante do imprevisto, embuchamos, a surpresa nos cortou a fala e escureceu o espírito. Como de ordinário, os meus novos amigos haviam devorado o almoço, lavado as mãos no esguicho mesquinho, repousado; findos os cochilos, entregaram-se aos exames das probabilidades, ao corte das unhas, à arrumação e desarrumação das bagagens. Quando o jantar veio, ainda estavam fartos. Alguns olhavam a comida com indiferença e afastavam-se bocejando; outros pegaram as marmitas e depressa as largaram. Inapetência contagiosa, recusa geral. Os faxinas jungiram-se aos varais, o caixão desapareceu, a chave tilintou na fechadura. Passou-se meia hora, e o guarda velho de cara manhosa surgiu com uma indagação desconcertante. Porque havíamos devolvido o rancho? O diretor queria saber se estávamos sem fome ou se se tratava de insurreição. Longos minutos ficamos desorientados. Espantava-me ver um caso tão insignificante engrossar, exigir sindicância. Ninguém tencionara rebelar-se, era evidente, mas todos se fechavam, com receio de confessar isto, de qualquer forma revelar covardia. Chateavam-se, resmungavam. Para o diabo. Não se explicariam, não dariam a impressão de recuar; dispunham-se a assumir responsabilidade por uma falta inexistente. Isso manifestava-se em pedaços de frases, em gestos desabridos; e havia também um mudo assombro, dificuldade em compreender a exigência impertinente. O guarda insistia na pergunta, mas falava a dezessete indivíduos; e nenhum se julgava na obrigação de responder. Ouvido em particular, cada homem diria sem esforço a verdade: ausência de apetite, apenas. No conjunto a confissão esmorecia, quase se desagregava, era difícil alguém arriscar-se à iniciativa de expor intuitos alheios. Agüentaríamos as conseqüências, iam mandar-nos para as galerias, provavelmente. Em situação normal temíamos isso; agora se atenuava o perigo, dividido por muitas pessoas. Com certeza ainda pensávamos nele; mais grave, porém, seria uma afirmação irrefletida, em desacordo talvez com os sentimentos do grupo. Com as melhores intenções, engendramos ali dentro incompatibilidades insolúveis, em vão tentamos explicar-nos, e isto é pior que todos os vexames causados pela polícia. E temeroso arvorar-se um homem, sem mandato, em representante de uma sociedade fluida, a vacilar entre opiniões e interesses opostos, ora pelo pés, ora pela cabeça. Um momento julgamos interpretá-la, decidimos por conta própria enfeixar as aspirações coletivas, e sucede esvaírem-se os desencontros, uma súbita unanimidade surgir contra nós; imaginamos ser úteis - e somos imprudentes.

Não refleti nisso. Indispensável uma consulta rápida, supus. O guarda, amolado, esperava a resposta, uma sílaba apenas. Sim ou não? Houvera bagunça, intuito subversivo? Se a questão se formulasse de outro modo, permitisse delonga, recursos, os meus companheiros não se engasgariam, a sílaba atravessada na garganta, como um osso. Mas o diretor exigia uma dificuldade: sim ou não? Achamos resistência, o guarda se dispunha a retirar-se.

- Um instante.

Veio-me a tentação de lançar-me ao jogo, exatamente como quando, no bacará, arrojava todas as fichas numa cartada: - Vamos resolver isto. Vocês estavam no propósito de esculhambar a administração? Se estavam, porque havemos de calar-nos? É arriar a trouxa e esperar. Se não estavam, parece bobagem mostrarmos uma valentia que não tivemos. Penso haver falado pouco mais ou menos assim. Em redor me afirmaram disposições pacíficas. Bem. E dirigi-me ao funcionário de rosto manhoso: - Diga ao diretor que não tencionamos fazer revolução aqui dentro. O jantar voltou porque era demais. É impossível, deitados, sem exercício, digerirmos tanta carne, tanta farinha: não temos estômagos de jibóia. Ignoro se a comida é ruim, nunca toquei nela, a minha parte sempre foi devolvida intacta. Não é protesto, é que não posso engolir isso.

A intervenção produziu bom efeito. Arrancando exíguas palavras, limitara-me ao essencial: os companheiros conservavam-se dignos, um diretor invisível recebia explicação razoável. Depois refleti na inquirição. Iam tratar-nos com dureza, submeter-nos a uma justiça diversa da usada no Pavilhão dos Primários. Lá rebentáramos a louça toda, e ninguém se lembrara de indagar motivos; em conseqüência tínhamos recebido talheres e pratos novos. Agora tencionavam descobrir malevolência em ninharias Pesos e medidas diferentes. Queriam talvez desforrar-se, obrigar-nos a ajustar contas com dois meses de atraso. Na verdade os paranaenses estavam alheios à bagunça. Mas isso não tinha importância. Rigor para todos.

5

UMA novidade nos chegou, retalhos de novidade; não houve meio de cosê-los. Ouvimos um barulho grande, vozeria para os lados do Pavilhão dos Primários, e o faxina preto nos cochichou que a polícia especial tinha aparecido lá e quebrado muita cabeça. Porquê? O informante erguia os ombros; tinham-lhe dito apenas aquilo: várias cabeças partidas. Como o rumor distante se prolongasse, apertei o guarda com perguntas vãs: o patife baixava o rosto, mordia os beiços, com ar de inocência muito safado. Não sabia. Por detrás dele, o negro arredondava o bagulho cor de leite, fazia caretas, negando a ingenuidade sorna. O grupo era burlesco e irritante. Embora não houvesse dúvida sobre as escapatórias do homem, os gestos simiescos e a zombaria silenciosa às costas dele estorvavam-nos a possibilidade vaga de por um instante enganar-nos.

Desordem no Pavilhão, gritos e pancadaria; certamente Agildo se comprometera elevando no fuzuê a voz fina e o gesto macio de gato. Não me podiam dar uma notícia, dizer ao menos se houvera transferência? Nesse caso, os estrangeiros iriam roer o osso mais duro: Ghioldi, Sérgio e Snaider gramariam tormentos físicos e morais; a coleção de selos de Birinyi desapareceria, e o pobre homem, desesperado, tentaria de novo abrir as artérias. Onde estavam Ghioldi, Sérgio, Benjamin Snaider e Valdemar Birinyi? O guarda sacudia a cabeça, bonachão, na maior ignorância deste mundo; não trabalhava por aquelas bandas, e, no meio de tantos presos, nunca ouvira os nomes das quatro pessoas que me interessavam. Esses miseráveis segredos nos arrasam, nos deixam em pandarecos. Vemos um sujeito sem as unhas dos pés, sabemos que elas foram arrancadas a torquês, e a nossa curiosidade não vai além; os sofrimentos findaram, as unhas renascerão, a memória da vítima se embotou; horrível é imaginarmos a redução de uma criatura com tenazes quando pensamos nela, exatamente quando pensamos nela. A limitação profissional de um guarda e a bisbilhotice vaga de um faxina levam-nos a criar medonhas realidades; as imagens surgem com vida intensa e em vão tentamos afastá-las: vemos perfeitamente dorsos lanhados, carne sangrenta, equimoses vermelhas, azuis, pretas. Essas coisas, percebidas de relance numa porta de cubículo, avultam em demasia quando se ausentam, e é horrível a expressão de um rosto meio esquecido, num instante recomposto. Palavras obliteradas se renovam, terrivelmente claras. Um berro nos chega aos ouvidos: - "Polícia." E uma voz trêmula desmaia: - "Não agüento mais. Vão matar-me." Foram esses, creio, os piores momentos que vivi no Pavilhão dos Militares, agachado na esteira ou refugiando-me perto da grade, olhando o vôo dos pardais. Realmente nunca me supus arriscado aos lanhos, a sapecar-me no fogo do maçarico; achava-me livre disso, estupidamente livre, até rebentando a louça do governo, por insinuação de Agildo. No íntimo devia julgar-me uma espécie de Anastácio Pessoa, pequenino e invulnerável.

A desgraça era indeterminada, uma desgraça fluida e abstrata, influenza sentimental. Essa impossibilidade de isolamento, a obrigação de sentir a miséria alheia, é imposta lá dentro. Inútil espalmar as mãos nas orelhas: o chilro das aves próximas não abafa o alarido contínuo. Além dos gorjeios, destacavam-se, nos dois ou três dias de celeuma, as conversas de Zoppo e as cantigas de Herculano. Zoppo era excelente camarada, ingênuo, simples, uma criança. Falou-me de parentes revolucionários perseguidos pelo fascismo e tentou ensinar-me a extração do ouro nas minas. ótimo tipo. A cara redonda iluminava-se, a voz doce, lenta, engrolada, narrava projetos de mineração e os tios que Mussolini prendeu e matou.

Os cantos me enjoavam. Ao chegar ao Pavilhão dos Primários, ainda sentia o gosto do café torpe bebido na galeria, tinha debaixo dos pés a oscilação das pranchas do Manaus, e o Hino do Brasileiro Pobre me endireitara o espinhaço derreado. Essa composição, que os jornais da polícia confundiam de propósito com a Internacional, dera-me alguma confiança em meu país chinfrim. Ou talvez a confiança fosse em mim mesmo. De fato precisava dela: uma semana de jejum, os beiços a sangrar, o interior em cacos, a hemorragia súbita. O Hino do Brasileiro Pobre me servira bastante. A correção de alguns versos maus fizera dele coisa menos ordinária que a arranjada para imbecilizar a infância nas escolas. As repetições me haviam fatigado e logo exasperado. Amolava-me sobretudo este pedaço, anterior à emenda: "Brasil, que lembra o fogo e lembra a árvore." Altas vozes em prisão vizinha: um infeliz a pedir água. Os berros e o hiato roubavam-me o sono. Todos os dias, à mesma hora, ecoava a insipidez morna das canções, alternando-se a marchas de carnaval, sambas, e isto era uma espécie de morfina, afastava-nos do espírito a viagem provável à Colônia. Vinha o silêncio, findava a anestesia, chegava-nos a depressão.

Agora não nos podíamos iludir: receios esparsos juntavam-se, engrossavam, e debalde nos esforçaríamos por amortecê-los. Contudo Herculano trepava à janela, segurava-se às traves de ferro e ordenava que todos cantassem. Donde lhe vinha aquela autoridade? O velho Eusébio fungava, ia encolher-se na outra sala. Insensíveis à exigência ruidosa, nem nos mexíamos nas esteiras, quase todos macambúzios, alguns a expandir-se em conjeturas desagradáveis. O tumulto não findava no Pavilhão dos Primários. Durante um minuto era balbúrdia enorme; em seguida esmorecia, ficava um rumor surdo: com certeza havia gente escalada para deitar lenha na fogueira sonora, não deixá-la apagar-se. Que estaria sucedendo? Herculano deixava a janela, indignado, como se assistisse a uma deserção. O canto devia ter para ele a importância de um rito, e a nossa indiferença o molestava.

6

DESPERTARAM-NOS antes de amanhecer, ordenaram que nos vestíssemos sem rumor. Lavagem precipitada na torneira, rápida mudança de roupa, leve tilintar de chaves, um sujeito invisível à porta, a exigir pressa. Findamos os arranjos, tomamos as bagagens, saímos. Escuridão lá fora, com certeza o dia estava longe, os pardais ainda não tinham acordado. Movemo-nos algum tempo entre as árvores, deixamos a prisão.

Um tintureiro nos aguardava na rua, abriu-se para receber-nos. Ignoro como entrei, acho que subi por uma pequena escada. Provavelmente com receio instintivo de maus tratos, empurrões, muitas vezes referidos, mergulhei rápido na abertura, à traseira do veículo, se não me engano. Outros me haviam precedido, e no exíguo espaço não descobri meio de acomodar-me. Arriei sentado não sei onde, em posição má, sem poder virar-me. Um objeto duro, mala ou fardo, esmagava-me as coxas e um corpo me tombava, pesado, no ombro direito Jogam-se ali homens e coisas, de mistura, e não indagam se o carro tem capacidade bastante para carga; depois batem a porta. Se alguém ficar com a perna levantada, viaja equilibrando-se num pe e escorando-se no vizinho. Provavelmente o sujeito que me caía por cima do ombro estava assim, uma perna no ar, buscando apoio, sacudindo-se, mal arrumado naquela espécie de lata de conserva. Se houvessem permitido que nos ajeitássemos, acharíamos talvez lugar para redes e sacos. Mas com semelhante azáfama, afundáramos à toa no buraco sombrio, éramos uma confusão de membros e pacotes. Em vão nos esforçaríamos por endireitar-nos. Aliás, diante de nossas preocupações, a imensa trapalhada valia pouco. Senti uma dor aguda no baixo-ventre. Uma operação anos atrás, o corte de peças necessárias, demora no hospital - e, em conseqüência, a perna a fazer-me pirraças. Largo tempo a claudicar, um aprumo difícil. Novamente me desarranjara na cadeia: vinham-me repuxões na carne doída, arrastava-me a cambalear, e os dias longos no Pavilhão dos Militares, a ausência de comida e a friagem do chão tinham-me arrasado. O diabo do volume saltava sobre a coxa doente, chocava-me na barriga, exatamente na região aberta pelos médicos. Cercavam-nos trevas cheias de manchas luminosas. As paredes do carro eram crivadas de furos redondos, as luzes da rua entravam por eles, corriam em dança louca, punham, traços vivos e inconstantes nas figuras em redor, e isto me dava a impressão de ver gente incompleta, pedaços humanos, olhos, bocas, orelhas, a aparecer e desaparecer continuadamente. Palavras soltas indicavam que alguns tipos se orientavam chegando-se aos buracos e ainda queriam enganar-se examinando o exterior: imaginavam pisar num cais, embarcar em navio para longe, muito longe, da Colônia Correcional. Essas fantasias não me pareceram absurdas, teimamos em pegar-nos a ilusões, sabendo perfeitamente que eram ilusões. Virei-me a custo, e as marteladas no pé da barriga cessaram. Consegui levantar-me, romper a massa compacta, avizinhar-me dos orifícios, enxergar uma esteira de asfalto molhado. Nesse instante um prazer inexplicável e uma idéia esquisita me assaltaram. Devia ser delírio, mas depois esse pensamento doido me importunou com freqüência. Tentava libertar-me, vencer o despropósito, horrorizava-me sentir prazer em tal situação, mas o asfalto molhado e os farrapos de luz me fascinavam. Quando me decidisse a escrever, em futuro remoto, produziriam bom efeito numa página. Como nos entram na cabeça maluqueiras semelhantes? Queremos extingui-Ias, voltar a ser viventes normais, e as miseráveis insistem. Em períodos vagos, num livro distante, surgiriam de novo o asfalto molhado e a deslocação vertiginosa das réstias. Queria convencer-me de que isso não tinha nenhuma importância, zangava-me por estar satisfeito, e a leseira permanecia.

O carro parou, rolamos uns por cima dos outros, esbarrando nas trouxas e pacotes. Abriu-se a porta, descemos. Quando saí, já diversos companheiros se moviam entre duas filas de soldados. Espantou-me conservar na mão a valise, guardá-la inconscientemente naquela balbúrdia. Na claridade ambígua da manhã nascente focos elétricos desfaleciam.

Avancei tonto, um homem de farda e fuzil à direita, outro à esquerda. Marchávamos num corredor estreito, renques de polícias a isolar-nos, e por detrás das cercas móveis curiosos embasbacavam para nós. Essa indiscrição me aborreceu. Estúpidos. Baixei a cabeça, e escaparam-me os arredores. Na barafunda mental a indignação transferiu-se. Estúpidos. Havia esquecido os basbaques; impressionava-me a inútil exposição de força. Bobagem, fanfarrice besta. Para vigiar um doente bambo e trôpego - dois sujeitos armados. Mergulhamos numa estação de estrada de ferro, mas só percebi isto ao entrarmos no carro de segunda classe.

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