Graciliano Ramos - Resumo Memorias do Carcere Parte I

02/12/2012 10:56

 

Graciliano Ramos

PRIMEIRA PARTE

VIAGENS

1

RESOLVO-ME a contar, depois de muita hesitação, casos passados há dez anos e, antes de começar, digo os motivos porque silenciei e porque me decido. Não conservo notas: algumas que tomei foram inutilizadas, e assim, com o decorrer do tempo, ia-me parecendo cada vez mais difícil, quase impossível, redigir esta narrativa. Além disso, julgando a matéria superior às minhas forças, esperei que outros mais aptos se ocupassem dela. Não vai aqui falsa modéstia, como adiante se verá. Também me afligiu a idéia de jogar no papel criaturas vivas, sem disfarces, com os nomes que têm no registro civil. Repugnava-me deformá-las, dar-lhes pseudônimo, fazer do livro uma espécie de romance; mas teria eu o direito de utilizá-las em história presumivelmente verdadeira? Que diriam elas se se vissem impressas, realizando atos esquecidos, repetindo palavras contestáveis e obliteradas?

Restar-me-ia alegar que o DIP, a polícia, enfim, os hábitos de um decênio de arrocho, me impediram o trabalho. Isto, porém, seria injustiça. Nunca tivemos censura prévia em obra de arte. Efetivamente se queimaram alguns livros, mas foram. raríssimos esses autos-de-fé. Em geral a reação se limitou a suprimir ataques diretos, palavras de ordem, tiradas demagógicas, e disto escasso prejuízo veio à produção literária.

Certos escritores se desculpam de não haverem forjado coisas excelentes por falta de liberdade -talvez ingênuo recurso de justificar inépcia ou preguiça. Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer. Não será impossível acharmos nas livrarias libelos terríveis contra a república novíssima, às vezes com louvores dos sustentáculos dela, indulgentes ou cegos,. Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.

Os homens do primado espiritual viviam bem, tratavam do corpo, mas nós, desgraçados materialistas, alojados em quarto de pensão, como ratos em tocas, a pão e laranja, como se diz na minha terra, quase nos reduzimos a simples espíritos. E como outros espíritos miúdos dependiam de nós, e era preciso calçá-los, vesti-los, alimentá-los, mandá-los ouvir cantigas e decorar feitos patrióticos, abandonamos as tarefas de longo prazo, caímos na labuta diária, contando linhas, fabricamos artigos, sapecamos traduções, consertamos engulhando produtos alheios. De alguma forma nos acanalhamos. Porque foi que um dos meus livros saiu tão ruim, pior que os outros? pergunta o crítico honesto. E alinha explicações inaceitáveis. Nada disso: acho que é ruim porque está mal escrito. E está mal escrito porque não foi emendado, não se cortou pelo menos a terça parte dele.

Aqui findo o resumo dos empecilhos até hoje apresentados à narração que inicio. Terão eles desaparecido? Alguns se atenuaram, outros se modificaram, determinam o que impediam, converteram-se em razões contrárias. Estarei próximo dos homens gordos do primado espiritual? Poderei refestelar-me? Não, felizmente. Se me achasse assim, iria roncar, pensar na eternidade. Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze.

Contudo é indispensável um mínimo de tranqüilidade, é necessário afastar as miseriazinhas que nos envenenam. Fisicamente estamos em repouso. Engano. O pensamento foge da folha meio rabiscada. Que desgraças inomináveis e vergonhosas nos chegarão amanhã? Terei desviado esses espectros? Ignoro. Sei é que, se obtenho sossego bastante para trabalhar um mês, provavelmente conseguirei meio de trabalhar outro mês. Estamos livres das colaborações de jornais e das encomendas odiosas? Bem. Demais já podemos enxergar luz a distância, emergimos lentamente daquele mundo horrível de treva e morte. Na verdade estávamos mortos, vamos ressuscitando.

O receio de cometer indiscrição exibindo em público pessoas que tiveram comigo convivência forçada já não me apoquenta. Muitos desses antigos companheiros distanciaram se, apagaram-se. Outros permaneceram junto a mim, ou vão reaparecendo ao cabo de longa ausência, alteram-se, completam-se, avivam recordações meios confusas e não vejo inconveniência em mostrá-los. Alguns reclamam a tarefa, consideram-na dever, oferecem-me dados, relembram figuras desaparecidas, espicaçam-me por todos os meios. Acho que estão certos: a exigência se fixa, domina-me. Há entre eles homens de várias classes, das profissões mais diversas, muito altas e muito baixas, apertados nelas como em estojos. Procurei observá-los onde se acham, nessas bainhas em que a sociedade os prendeu. A limitação impediu embaraços e atritos, levou-me a compreendê-los, senti-los, estimá-los, não arriscar julgamentos precipitados.

E quando isto não foi possível, às vezes me acusei. Ser-me-ia desagradável ofender alguém com esta exumação. Não ofenderei, suponho. E, refletindo, digo a mim mesmo que, se isto acontecer, não experimentarei o desagrado. Estou a descer para a cova, este novelo de casos em muitos pontos vai emaranhar-se, escrevo com lentidão e provavelmente isto será publicação póstuma, como convém a um livro de memórias. Realmente há entre os meus companheiros sujeitos de mérito, capazes de fazer sobre os sucessos a que vou referir-me obras valiosas. Mas são especialistas, eruditos, inteligências confinadas à escrupulosa análise do pormenor, olhos afeitos a investigações em profundidade. Há também narradores, e um já nos deu há tempo excelente reportagem, dessas em que é preciso dizer tudo com rapidez.

Em relação a eles, acho-me por acaso em situação vantajosa. Tenho exercido vários ofícios, esqueci todos, e assim posso mover-me sem nenhum constrangimento. Não me agarram métodos, nada me força a exames vagarosos. Por outro lado, não me obrigo a reduzir um panorama, sujeitá-lo a dimensões regulares, atender ao paginador e ao horário do passageiro do bonde. Posso andar para a direita e para a esquerda como um vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos. Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente.

E aqui chego à última objeção que me impus. Não resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui obrigado a atirá-los na água. Certamente me irão fazer falta, mas terá sido uma perda irreparável? Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a cor das folhas que tombavam das árvores, num pátio branco, a forma dos montes verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se esmoreceram, deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade.

 

Em conversa ouvida na rua, a ausência de algumas sílabas me levou a conclusão falsa e involuntariamente criei um boato. Estarei mentindo? Julgo que não. Enquanto não se reconstituírem as sílabas perdidas, o meu boato, se não for absurdo, permanece e é possível que esses sons tenham sido eliminados por brigarem com o resto do discurso. Quem sabe se eles aí não se encaixaram com intuito de logro? Nesse caso havia conveniência em suprimi-los, distinguir além deles uma verdade superior a outra verdade convencional e aparente, uma verdade expressa de relance nas fisionomias. Um sentido recusou a percepção de outro, substituiu-a.

Onde estará o erro? Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e me dão hoje impressão de realidade. Formamos um grupo muito complexo, que se desagregou. De repente nos surge a necessidade urgente de recompô-lo. Define-se o ambiente, as figuras se delineiam, vacilantes, ganham relevo, a ação começa. Com esforço desesperado arrancamos de cenas confusas alguns fragmentos. Dúvidas terríveis nos assaltam. De que modo reagiram os caracteres em determinadas circunstâncias?

O ato que nos ocorre, nítido, irrecusável, terá sido realmente praticado? Não será incongruência? Certo a vida é cheia de incongruências, mas estaremos seguros de não nos havermos enganado? Nessas vacilações dolorosas, às vezes necessitamos confirmação, apelamos para reminiscências alheias, convencemo-nos de que a minúcia discrepante não é ilusão.

Difícil é sabermos a causa dela, desenterrarmos pacientemente as condições que a determinaram. Como isso variava em excesso, era natural que variássemos também, apresentássemos falhas. Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma, sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos: devo ter-me revelado com freqüência egoísta e mesquinho. E esse desabrochar de sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam infligir naquele ano terrível.

Desgosta-me usar a primeira pessoa. Se se tratasse de ficção, bem: fala um sujeito mais ou menos imaginário; fora daí é desagradável adotar o pronomezinho irritante, embora se façam malabarismos por evitá-lo. Desculpo-me alegando que ele me facilita a narração. Além disso não desejo ultrapassar o meu tamanho ordinário. Esgueirar-me-ei para os cantos obscuros, fugirei às discussões, esconder-me-ei prudente por detrás dos que merecem patentear-se.

 

2

NO COMEÇO de 1936, funcionário na Instrução Pública de Alagoas, tive a notícia de que misteriosos telefonemas, com veladas ameaças, me procuravam o endereço. Desprezei as ameaças: ordinariamente o indivíduo que tenciona ofender outro não o avisa. Mas os telefonemas continuaram.

Mandei responder que me achava na repartição diariamente, das nove horas ao meio-dia, das duas às cinco da tarde. Não era o que pretendiam. Nada de requerimentos: queriam visitar-me em casa. Pedi que não me transmitissem mais essas tolices, com certeza picuinhas de algum inimigo débil, e esqueci-as: nem um minuto supus que tivessem cunho oficial. Algum tempo depois um amigo me procurou com a delicada tarefa de anunciar-me, gastando elogios e panos mornos, que a minha permanência na administração se tornara impossível. Não me surpreendi. Pelo meu cargo haviam passado em dois anos oito sujeitos.

Eu conseguira agüentar-me ali mais de três anos, e isto era espantoso. Ocasionara descontentamentos, decerto cometera numerosos erros, não tivera a habilidade necessária de prestar serviços a figurões, havia suprimido nas escolas o Hino de Alagoas, uma estupidez com solecismos, e isto se considerava impatriótico. O aviso que me traziam era, pois, razoável, e até devia confessar-me grato por me haverem conservado tanto tempo.

Lembro-me perfeitamente da cena. O gabinete pequeno se transformara numa espécie de loja: montes de fazenda e cadernos, que oferecíamos às crianças pobres. Findo o expediente, sucedia retardar-me ali, a escrever, esquecia-me do tempo, e às vezes, meia-noite, o guarda vinha dizer-me que iam fechar o portão do Palácio. Parte do meu último livro fora composto no bureau largo, diante de petições, de números do Literatura Internacional.

Naquela noite, acanhado, olhando pelas janelas os canteiros do jardim, as árvores da Praça dos Martírios, Rubem me explicava que Osman Loureiro, o governador, se achava em dificuldade: não queria demitir-me sem motivo, era necessário o meu afastamento voluntário.

Ora, motivo há sempre, motivo se arranja. Evidentemente era aquilo início de uma perseguição que Osman não podia evitar: constrangido por forças consideráveis, vergava; se quisesse resistir, naufragaria. Não presumi que nele houvesse perfídia. Sempre se revelara razoável, nunca entre nós houvera choque. Provavelmente se perturbava como eu. Conversei com Rubem, sem melindres, revolvendo as gavetas, procurando papéis meus. Os integralistas serravam de cima, era o diabo. Demissão ninguém me forçaria a pedir. Havia feito isso várias vezes, inutilmente; agora não iria acusar-me. Dessem-na de qualquer jeito, por conveniência de serviço.

Despedi-me de Rubem Loureiro e deixei sobre o bureau os volumes do Literatura Internacional. Essa matéria, na safadeza e na burrice dominantes naquela época, render-me-ia talvez um processo. Iriam dr. Sidrônio e Luccarini, meus companheiros de trabalho, passar vexames por minha causa? Não. Dr. Sidrônio era católico, não escrevia, como eu, livros perigosos nem se gastava em palestras inconvenientes nos cafés. Provavelmente me substituiria. Luccarini tinha sido meu inimigo. Apanhado certa vez em falta e censurado, replicara-me:

Eu também já mandei. Mas quando queria dizer isso que o senhor está dizendo, chamava o sujeito particularmente. Ora essa! O senhor chega tarde, larga a banca e vive passeando pelas seções alheias em público.

Luccarini voltara ao seu lugar e durante três meses fora de uma pontualidade irritante. Era o primeiro a chegar, o último a sair, não se levantava nem para ir ao mictório. Também não fazia nada, inércia completa. Na rua, se me via, fechava a cara, enrugava-se com dignidade excessiva. Isso não tinha importância, mas o procedimento na repartição irritava-me.

 

Como vai Luccarini? perguntava Osman. Pessimamente. É um preguiçoso.

Osman contradizia-me e gabava aquela inutilidade. Não me conformava. E dera graças a Deus quando Luccarini se ausentara, passara seis meses no Recife, curando uma sinusite, com todos os vencimentos.

Ao voltar, agradecera-me um obséquio não feito, apresentara-me um relatório não encomendado, insinuara-me a compra de um fichário e o abandono daqueles horríveis calhamaços onde o registro das professoras se fragmentava e confundia. Agora trabalhava demais, em poucos meses corrigira aquela balbúrdia.

Saí do Palácio, atordoado. Eximia-me de obrigações cacetes, mas isso continuava a aperrear-me, juntava-se a amolações domésticas e a planos vagos. Sentia desgosto e vergonha, desejava ausentar-me para muito longe, não pensar em despachos e informações. Andei pelas ruas, tomei o bonde. Transeuntes e passageiros pareciam conhecer o desagradável sucesso, ler-me no rosto a inquietação.

Evitava considerar-me vítima de uma injustiça: deviam ter razão para repelir-me. Seria bom que ela se publicasse no jornal, isto desviaria comentários maliciosos. Esforçava-me por julgar aquilo uma insignificância. Já me havia achado em situação pior, sem emprego, numa cama de hospital, a barriga aberta, filhos pequenos, o futuro bem carregado. Tinha agora uns projetos literários, indecisos. Certamente não se realizariam, mas anulavam desavenças conjugais intempestivas, que se vinham amiudando e intensificando sem causa. A lembrança dessas querelas, somada aos telefonemas e à demissão, azedou-me a viagem a Pajuçara. Indispensável refugiar-me no romance concluído, imaginá-lo na livraria, despertando algum interesse, possibilitando ainda uma vez mudança de profissão.

A última, encerrada meia hora antes, tinha sido um horror: o regulamento, o horário, o despacho, o decreto, a portaria, a iniqüidade, o pistolão, sobretudo a certeza de sermos uns desgraçados trambolhos, de quase nada podermos fazer na sensaboria da rotina. Se não me houvessem despedido assim de chofre, com um recado, humilhantemente, poderia até julgar aquilo um benefício.

O essencial era retirar-me de Alagoas e nunca mais voltar, esquecer tudo, coisas, fatos e pessoas. Alagoas não me fizera mal nenhum, mas, responsabilizando-a pelos meus desastres, devo ter-me involuntariamente considerado autor de qualquer obra de vulto, não reconhecida.

Moderei a explosão de vaidade besta: impossível contrapor-me a homens e terra, a todos os homens e a toda a terra, vinte e oito mil quilômetros quadrados e um milhão de habitantes. Essa horrível presunção de selvagem tinha um mérito: vedava-me identificar inimigos, dirigir ódio a alguém. O ódio se dispersava, diluía-se, era uma indeterminada repugnância morna, alcançava os edifícios, o morro do Farol, o Aterro, a praia, coqueiros e navios repisados no último romance, inédito, feito aos arrancos, com largos intervalos.

Certas passagens desse livro não me descontentavam, mas era preciso refazê-lo, suprimir repetições inúteis, eliminar pelo menos um terço dele. Necessário meter-me no interior, passar meses trancado, riscando linhas, condensando observações espalhadas. Não, porém, no interior de Alagoas: indispensável fugir a indivíduos que me conhecessem. Era pouco não tornar a pôr os pés no Palácio dos Martírios: queria evitar indiscretos que me houvessem visto manuseando os horríveis papéis sujos.

 

Não me lembrava das pessoas. Osman, dr. Sidrônio e Luccarini eram sujeitos decentes. Mas a engrenagem onde havíamos entrado nos sujava. Tudo uma porcaria. Tolice reconhecer que a professora rural, doente e mulata, merecia ser trazida para a cidade e dirigir um grupo escolar: fazendo isso, dávamos um salto perigoso, descontentávamos incapacidades abundantes.

Essas incapacidades deviam aproveitar-se de qualquer modo, cantando hinos idiotas, emburrando as crianças. O emburramento era necessário. Sem ele, como se poderiam agüentar políticos safados e generais analfabetos?

Necessário reconhecer que a professora mulata não havia sido transferida e elevada por mim: fora transferida por uma idéia, pela idéia de aproveitar elementos dignos, mais ou menos capazes. Isso desaparecia. E os indivíduos que haviam concorrido para isso desapareciam também. Excelente que Osman, em cima, e Luccarini, embaixo, continuassem. Não continuariam muito tempo.

Ficava a estupidez: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas. Para que meter semelhante burrice na cabeça das crianças, Deus do céu? Realmente eu havia sido ali uma excrescência, uma excrescência agora amputada, a rodar no bonde, a olhar navios e coqueiros. De certo modo as ameaças dos telefonemas me agradavam: embora indeterminadas, indicavam mudanças, forçar-me-iam a azeitar as articulações perras. Conservara-me regulamentar e besta mais de três anos, numa cadeira giratória, manejando carimbos, assinando empenhos, mecânico, a deferir e indeferir de acordo com as informações de seu Benedito, realmente obedecendo a seu Benedito. Que diabo me fariam? Imaginei um desacato, tiros ou facadas, em hora de movimento, no relógio oficial.

Osman me perguntara certa vez:
Você anda desarmado? Em que é que você confia, criatura?

Depois disso José Auto me emprestara um revólver, mas o revólver tinha apenas três balas e de ordinário ficava nas gavetas, era difícil encontrá-lo. Fora um alívio a restituição. Ia fazer-me falta quando me agredissem. Foi o que imaginei: uma agressão pública, muitos integralistas atacando-me, furando-me, partindo-me as costelas, os braços e a cabeça. Recolhi-me.

Na casinha de Pajuçara fiquei até a madrugada consertando as últimas páginas do romance. Os consertos não me satisfaziam: indispensável recopiar tudo, suprimir as repetições excessivas. Alguns capítulos não me pareciam muito ruins, e isto fazia que os defeitos medonhos avultassem. O meu Luís da Silva era uma falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo cordas em toda a parte. Aquele assassinato, realizado em vinte e sete dias de esforço, com razoável gasto de café e aguardente, dava-me impressão de falsidade. Realmente eu era um assassino bem chinfrim.

O delírio final se atamancara numa noite, e fervilhava de redundâncias. Enfim não era impossível canalizar esses derramamentos. O diabo era que no livro abundavam desconexões, talvez irremediáveis. Necessário ainda suar muito para minorar as falhas evidentes. Mas onde achar sossego? Minha mulher vivia a atenazar-me com uma ciumeira incrível, absolutamente desarrazoada.

Eu devia enganá-la e vingar-me, se tivesse jeito para essas coisas. Agora, com a demissão, as contendas iriam acirrar-se, enfurecer-me, cegar-me, inutilizar-me dias inteiros, deixar-me apático e vazio, aborrecendo o manuscrito. Largara-o duas vezes, estivera um ano sem vê-lo, machucara folhas e rasgara folhas. As interrupções e as discórdias sucessivas deviam ser causa daqueles altos e baixos, daquelas impropriedades. Conveniente isolar-me, a idéia da viagem continuava a perseguir-me. De que modo realizá-la? Havia uma penca de filhos, alguns bem miúdos. E restava-me na carteira um conto e duzentos. Apenas.

 

3

NO DIA seguinte, 3 de março, entreguei pela manhã os originais a d. Jeni, datilógrafa. Ao meio-dia uma parenta me visitou e este caso insignificante exerceu grande influência na minha vida, talvez haja desviado o curso dela. Essa pessoa indiscreta deu-me conselhos e aludiu a crimes vários praticados por mim. Agradeci e pedi-lhe que me denunciasse, caso ainda não o tivesse feito. A criatura respondeu-me com quatro pedras na mão e retirou-se. Minha mulher deu razão a ela e conseguiu arrastar-me a um dos acessos de desespero que ultimamente se amiudavam. Como era possível trabalhar em semelhante inferno? Nesse ponto surgiu Luccarini. Entrou sem pedir licença, atarantado, cochichou rapidamente que iam prender-me e era urgente afastar-me de casa, recebeu um abraço e saiu.

 

Ótimo. Num instante decidi-me. Não me arredaria, esperaria tranqüilo que me viessem buscar. Se quisesse andar alguns metros, chegaria à praia, esconder-me-ia por detrás de uma duna, lá ficaria em segurança. Se me resolvesse a tomar o bonde, iria até o fim da linha, saltaria em Bebedouro, passaria o resto do dia a percorrer aqueles lugares que examinei para escrever o antepenúltimo capítulo do romance. Não valia a pena.

Expliquei em voz alta que não valia a pena. Entrei na sala de jantar, abri uma garrafa de aguardente, sentei-me à mesa, bebi alguns cálices, a monologar, a dar vazão à raiva que me assaltara. Propriamente não era monólogo: minha mulher replicava com estridência. Escapava-me a significação da réplica, mas a voz aguda me endoidecia, furava-me os ouvidos. Não conheço pior tortura que ouvir gritos. Devia existir uma razão econômica para esse desconchavo: as minhas finanças equilibravam-se com dificuldade, evitávamos reuniões, festas, passeios. De fato as privações não me inquietavam. Minha mulher, porém, sentia-se lesada, o que me fazia perder os estribos. De repente um ciúme insensato. A incongruência me arrancava a palavra dura:

Que estupidez!

Naquele momento a idéia da prisão dava-me quase prazer: via ali um princípio de liberdade. Eximira-me do parecer, do ofício, da estampilha, dos horríveis cumprimentos ao deputado e ao senador; iria escapar a outras maçadas, gotas espessas, amargas, corrosivas. Na verdade suponho que me revelei covarde e egoísta: várias crianças exigiam sustento, a minha obrigação era permanecer junto a elas, arranjar-lhes por qualquer meio o indispensável.

Desculpava-me afirmando que isto se havia tornado impossível. Que diabo ia fazer, perseguido, a rolar de um canto para outro, em sustos, mudando o nome, a barba longa, a reduzir-me, a endividar-me? Se a vida comum era ruim, essa que Luccarini me oferecera num sussurro, a tremura e a humilhação constante, dava engulhos. Além disso eu estava curioso de saber a argüição que armariam contra mim. Bebendo aguardente, imaginava a cara de um juiz, entretinha-me em longo diálogo, e saía-me, perfeitamente, como sucede em todas as conversas interiores que arquiteto. Uma compensação: nas exteriores sempre me dou mal. Com franqueza, desejei que na acusação houvesse algum fundamento. E não vejam nisto bazófia ou mentirás: na situação em que me achava justifica-se a insensatez. A cadeia era o único lugar que me proporcionaria o mínimo de tranqüilidade necessária para corrigir o livro.

O meu protagonista se enleara nesta obsessão: escrever um romance além das grades úmidas e pretas. Convenci-me de que isto seria fácil: enquanto os homens de roupa zebrada compusessem botões de punho e caixinhas de tartaruga, eu ficaria largas horas em silêncio, a consultar dicionários, riscando linhas, metendo entrelinhas nos papéis datilografados por d. Jeni. Deixar-me-iam ficar até concluir a tarefa? Afinal a minha pretensão não era tão absurda como parece. Indivíduos tímidos, preguiçosos, inquietos, de vontade fraca habituam-se ao cárcere. Eu, que não gosto dê andar, nunca vejo a paisagem, passo horas fabricando miudezas, embrenhando-me em caraminholas, porque não haveria de acostumar-me também? Não seria mau que achassem nos meus, atos algum, involuntário, digno de pena. É desagradável representarmos o papel de vítima.

 

Coitado!

É degradante. Demais estaria eu certo de não haver cometido falta grave? Efetivamente não tinha lembrança, mas ambicionara com fúria ver a desgraça do capitalismo, pregara-lhe alfinetes, únicas armas disponíveis, via com satisfação os muros pichados, aceitava as opiniões de Jacob. Isso constituiria um libelo mesquinho, que testemunhas falsas ampliariam. Tinha o direito de insurgir-me contra os depoimentos venenosos?

De forma nenhuma. Não há nada mais precário que a justiça. E se quisessem transformar em obras os meus pensamentos, descobririam com facilidade matéria para condenação. Não me repugnava a idéia de fuzilar um proprietário por ser proprietário. Era razoável que a propriedade me castigasse as intenções.

Fui ao banheiro, tomei um longo banho. Tolice vivermos a apurar responsabilidades. Muitas coisas nos acontecem por acaso, e às vezes nos chegam vantagens por acaso. Julgava é que não me deteriam nem uma semana. Dois ou três dias depois me mandariam embora, dando-me explicações. Um engano. Findo o banho, preparei-me para sair. Em seguida meti alguma roupa branca na valise, mandei comprar muito cigarro e fósforo.

D. Irene, diretora de um. grupo escolar vizinho, apareceu à tarde. Envergonhei-me de tocar na demissão, e falamos sobre assuntos diversos. Aí, me chegaram dois telegramas. Um encerrava . insultos; no outro, certo candidato prejudicado felicitava a instrução alagoana pelo meu afastamento. Rasguei os papéis, disposto a esquecê-los. Sumiram-se na verdade os nomes dos signatários e as expressões injuriosas, ter-se-ia talvez a pequena infâmia esvaído inteiramente se não contrastasse com a presença de d. Irene ali na sala. O que me interessava no momento era o esforço despendido por ela em três anos. Talvez isso houvesse concorrido para embranquecer-lhe os cabelos, dar-lhe aquela gravidade atenta. Não sorria nunca. E sob o penteado grisalho o rosto moço tinha uma beleza fria No estabelecimento dela espalhavam-se a princípio duzentos e poucos meninos, das famílias mais arrumadas de Pajuçara. Numa campanha de quinze dias, por becos, ruelas, cabanas de pescadores, d. Irene enchera a escola. Aumentado o material, divididas as aulas em dois turnos, mais de oitocentas crianças haviam superlotado o prédio, exibindo farrapos, arrastando tamancos.

Ao vê-las, um interventor dissera indignado:

Convidam-me para assistir a uma exposição de misérias.

 

E alguém respondera.

 

É o que podemos expor

Calçados e vestidos pela caixa escolar, os garotos se haviam apresentado com decência. Lembrava-me da lufa-lufa necessária para modificá-los, ria-me pensando em Flora Ferraz sentada no chão, às oito horas da noite, a experimentar sapatos em negrinhos. Avizinhando-me dela, repelira-me com raiva:

O senhor tem coragem de me dar a mão? Estou suja. Desde a manhã aqui pegando os pés destes moleques!
Quatro dessas criaturinhas arrebanhadas nesse tempo, beiçudas e retintas, haviam obtido as melhores notas nos últimos exames.

 

Que nos dirão os racistas, d. Irene?

Na fronte calma de d. Irene esboçava-se uma ligeira ruga, e eu admirava-lhe a dignidade simples, a decisão rigorosa de abelha-mestra. Apesar de sentir prazer em ouvi-la, desejava que ela se retirasse: inquietava-me saber que a qualquer momento viriam buscar-me, e isto a perturbaria. Depois a notícia daquela visita com certeza lhe ocasionaria prejuízos. Levantava-me, procurava um meio de afastá-la, os ouvidos abertos aos rumores da rua. Afinal, cerca de sete horas, um automóvel deslizou na areia, deteve-se à porta e um oficial do exército, espigado, escuro, cafuz ou mulato, entrou na sala.

 

Que demora, tenente! Desde o meio-dia estou à sua espera.

 

Não é possível, objetou o rapaz empertigando-se.

Como não? Está aqui a valise pronta, não falta nada. O sujeitinho deu um passo à retaguarda, fez meia-volta, aprumou-se, encarou-me. Tinha-lhe observado esse curioso sestro um mês antes, na repartição, onde me surgira pleiteando a aprovação de uma sobrinha reprovada. Eu lhe mostrara um ofício em que a diretora do Grupo Escolar de Penedo contava direito aquele negócio: a absurda pretensão de se nomear para uma aluna banca especial fora de tempo.

Impossível, tenente. Isso é anti-regulamentar. Demais, se a garota não conseguiu aprender num ano, certamente não foi recuperar em dias o tempo perdido. Sua sobrinha não é nenhum gênio, suponho.

 

O tenente recuara, rodara sobre os calcanhares, perfilara-se em atitude perfeitamente militar e replicara com absoluta impudência:

É o que ela é. Um gênio. Posso afirmar-lhe que é gênio.

E voltara a repetir o mesmo pedido, usando as mesmas palavras. Depois de meia hora de marchas e contramarchas cansativas, fizera a saudação, a última reviravolta, abrira a portinhola e deixara o gabinete em passos rítmicos. No dia seguinte regressara com uma carta de recomendação, repisara a exigência, lera impenetrável o regulamento e o ofício, ouvira a recusa fatal e, no fim do resumo do caso enfadonho, o recuo, o movimento circular, o aprumo, a solicitação invariável, o obtuso louvor da sobrinha:

Um gênio, eu garanto. Admita que ela seja realmente um gênio.

 

Gastara-me a paciência e irritara-me. Agora, finda a pirueta, olhando a valise, prova de que não haviam sabido guardar segredo, encolheu os ombros, sorriu, excessivamente gentil:
Vai apenas essa maleta? Aqui entre nós posso dizer: acho bom levar mais roupa. É um conselho.

 

Obrigado, tenente.

 

Comecei a perceber que as minhas prerrogativas bestas de pequeno-burguês iam cessar, ou tinham cessado. Retirei da mesa três livros chegados na véspera, pelo correio. Despedi me. D. Irene se espantava, talvez sem compreender bem a significação exata daquilo. Meus filhos mais velhos, agitados e pálidos, fingiam calma. Beijei as crianças, sossegadas. Procurei na cara de minha mulher sinal de medo. Em vão: nem dessa vez nem de outras lhe percebi nenhum receio. Nos momentos mais difíceis sempre a vi corajosa, e isto a diferençava dos parentes, em geral pusilânimes. Depois do conflito da manhã serenara, assistira calada aos preparativos, sem acreditar talvez na realização da, Diante da cabriola e do sorriso do mulato, pareceu despertar, mas não revelou susto. Uma pergunta me verrumava o espírito: porque vinha prender-me o sujeito que um mês antes me fora amolar com insistências desarrazoadas?

Quando quiser, tenente.

 

Saímos da sala e entramos no automóvel, um grande carro oficial.

 

4

RODAMOS em silêncio, atravessamos o bairro de Jaraguá e a cidade. Não me lembro de haver dito uma palavra ao tenente. Ignorava o destino que me reservavam, mas isto não me despertava nenhuma curiosidade. Fastio, quase indiferença, a vaga compreensão de ter caído numa ratoeira suja, a suspeita de mesquinharia e ridículo no incidente medíocre. Porque estava ali junto de mim aquele sujeito? Balançando nas molas doces, impossibilitado de bater os calcanhares, retesar a espinha, fazer a meia-volta e a continência, anulava-se. A pergunta mental surgida em casa continuava a espicaçar-me. Certo ele não havia determinado a minha prisão, mas era curioso encarregar-se de efetuá-la. Sem me incomodar com essa pequena vingança, pensei noutras, vi o país influenciado pelos tenentes que executam piruetas, pelas sobrinhas dos tenentes que executam piruetas. Desejariam os poderes públicos que eu mandasse aprovar com dolo a sobrinha do tenente, em Penedo? Não me exigiriam expressamente a safadeza, mas deviam existir numerosos tenentes e numerosas sobrinhas, e a conjugação dessas miuçalhas mandava para as grades um pai de família, meio funcionário, meio literato.

Chegamos ao quartel do 20.º Batalhão. Estivera ali em 1930, envolvera-me estupidamente numa conspiração besta com um coronel, um major e um comandante de polícia, e vinte e quatro horas depois achava-me preso e só. Dezesseis cretinos de um piquete de Agildo Barata haviam fingido querer fuzilar-me. Um dos soldadinhos que me acompanhavam chorava como um desgraçado. Parecera-me então que a demagogia tenentista, aquele palavrório chocho, nos meteria no atoleiro. Ali estava o resultado: ladroagens, uma onda de burrice a inundar tudo, confusão, mal-entendidos, charlatanismo, energúmenos microcéfalos vestidos de verde a esgoelar-se em discursos imbecis, a semear delações. O levante do 3.° Regimento e a revolução de Natal haviam desencadeado uma perseguição feroz. Tudo se desarticulava, sombrio pessimismo anuviava as almas, tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã. Pior: numa colônia italiana. Mussolini era um grande homem, e escritores nacionais celebravam nas folhas as virtudes do óleo de rícino. A literatura fugia da terra, andava num ambiente de sonho e loucura, convencional, copiava figurinos estranhos, exibia mamulengos que os leitores recebiam com bocejos e indivíduos sagazes elogiavam demais. O romance abandonava o palavrão, adquiria boas maneiras, tentava comover as datilógrafas e as mocinhas das casas de quatro mil e quatrocentos. Uma beatice exagerada queimava incenso defumando letras e artes corrompidas, e a crítica policial farejava quadros e poemas, entrava nas escolas, denunciava extremismos. Um professor era chamado à delegacia: Esse negócio de africanismo é conversa. O senhor quer inimizar os pretos com a autoridade constituída. O Congresso apavorava-se, largava bambo as leis de arrocho e vivíamos de fato numa ditadura sem freio. Esmorecida a resistência, dissolvidos os últimos comícios, mortos ou torturados operários e pequeno-burgueses comprometidos, escritores e jornalistas a desdizer-se, a gaguejar, todas as poltronices a inclinar-se para a direita, quase nada poderíamos fazer perdidos na multidão de carneiros.

 

Pensando nessas coisas, desci do automóvel, atravessei o pátio, que, em 1930, vira cheio de entusiasmos enfeitados com braçadeiras vermelhas. Numa saleta, um rapaz me recebeu em silêncio, conduziu-me a outra saleta onde havia uma cama e desapareceu. O mulato fez a última viravolta e desapareceu também. A porta ficou um soldado com fuzil. Evidentemente as minhas reflexões tendiam a justificar a inércia, a facilidade com que me deixara agarrar. Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não teria havido uma só revolução no mundo. Revolucionário chinfrim. Desculpava-me a idéia de não pertencer a nenhuma organização, de ser inteiramente incapaz de realizar tarefas práticas. Impossível trabalhar em conjunto. As minhas armas, fracas e de papel, só podiam ser manejadas no isolamento. No íntimo havia talvez o incerto desejo de provocar a nova justiça inquisitorial, perturbar acusadores, exibir em tudo aquilo embustes e patifarias. Essa vaidade tola devia basear-se na suposição de que enxergariam em mim um indivíduo, com certo número de direitos. Logo ao chegar, notei que me despersonalizavam. O oficial de dia recebera-me calado. E a sentinela estava ali encostada ao fuzil, em mecânica chateação, como se não visse ninguém.

Sentado na cama, o chapéu em cima da valise, abri com o pente as páginas dos três volumes que trouxera: Território Humano de José Geraldo Vieira, Gente Nova de Agrippino Grieco e Dois Poetas de Otávio de Faria. Li a primeira folha do primeiro umas três vezes, inutilmente. Conservei esses livros muitos meses, acompanharam-me por diversos lugares, foram remoídos, esfacelaram-se, pulverizaram-se; hoje, com esforço, consigo recordar algumas passagens de um deles.

Nada afinal do que eu havia suposto: o interrogatório, o diálogo cheio de alçapões, alguma carta apreendida, um romance com riscos e anotações, testemunhas sumiram-se. Não me acusavam, suprimiam-me. Bem. Provavelmente seria inquirido no dia seguinte, acareado, transformado em autos. Que horas seriam? Estirei-me no colchão, vestido, o livro de José Geraldo aberto sobre o estômago vazio. Em jejum desde manhã, mas isto apenas me causava uma vaga tontura e escurecia a vista. E concorria talvez para dificultar a compreensão do texto. Virando a cabeça, percebia à esquerda o soldado imóvel. Essa precaução me parecia tão burlesca e tão estúpida que interrompia a leitura vã, ria-me, apesar de tudo. Sentava-me, acendia um cigarro. Naturalmente não havia cinzeiro, esses luxos de civilização tinham desaparecido. Burlesco. Recebera a notícia ao meio-dia, lavara-me, vestira-me, lera dois telegramas desaforados, conversara só, com minha mulher e com d. Irene. Tinham-me feito esperar sete horas. E ali estava com sentinela à vista. Para quê? Não era mais simples trancarem a porta? Aquele dispêndio inútil de energia corroborava o desfavorável juízo que eu formara da inteligência militar. De novo me deitava, pegava a brochura, soltava-a, cobria os olhos com o chapéu por causa da luz, tornava a levantar-me, acendia outros cigarros. Já no cimento se acumulavam pontas. Nenhum relógio na vizinhança. Apenas os indeterminados rumores noturnos da caserna: um apito, vozes remotas, confusas. O sujeito firme, encostado ao fuzil. Iria passar ali a noite, dormir em pé? Eu não tinha sono, mas ele, coitado, com certeza engolia bocejos, amolava-se. Enfim que significação tinha aquilo? Pretenderiam manifestar-me deferência, considerar-me um sujeito pernicioso demais, que era preciso vigiar, ou queriam apenas desenferrujar as molas de um recruta desocupado? Compreenderia ele que era uma excrescência, ganhava cãibras à toa, equilibrando-se ora numa perna, ora noutra? Se não fosse obrigado a desentorpecer-se e dar-me um tiro em caso de fuga, aquela extensa vigília só tinha o fim de embrutecê-lo na disciplina.

rocurei um mictório, nas paredes lisas, cheguei-me à porta, desci à calçada, passei em frente do manequim teso, sem me decidir a perguntar-lhe quantos metros o fio que me amarrava poderia estender-se: provavelmente, nas funções de espantalho, a criatura emudecia. Avizinhei-me do pátio coberto de manchas de sombra e luz. Regressei ao cabo de um minuto, busquei o lavatório, achei uma pequena moringa e um copo. A higiene satisfazia-se com isso. Voltei a estender-me no colchão, fatigado, cochilei algum tempo, confundi o real e o imaginário, os olhos protegidos pela aba do chapéu. Despertava, fumava, distinguia o estafermo e o fuzil, imaginava, olhando-os de perto, vendo a carranca e o brilho do metal, que haviam sido ali postos para amedrontar-me. Recurso infantil: conjeturei crianças barbadas, ingênuas e maliciosas. O pobre homem devia estar cansado. Seria o mesmo do começo ou teria vindo outro durante os cochilos? Havia-me escapado a substituição. Também me escapavam próximos rumores possíveis: gemidos do vento nas árvores do pátio, a marcha lenta da ronda. Realmente não me lembro de árvores nem da ronda: isto é suposição. Esqueci pormenores, ou não os observei.

 

Ter-me-ia revelado inquieto? Pouco me importava o conceito que a sentinela pudesse ter dos meus movimentos excessivos, nem me ocorria que o infeliz, tão parado, tivesse conceitos. Mas na verdade a inquietação era puramente física: difícil permanecer num lugar; precisão de levantar-me, sentar-me, deitar-me. fumar; a ligeira sonolência perturbada vezes sem conta e a leitura das mesmas páginas de José Geraldo Vieira Parecia-me faltar a um dever. Habituara-me a ler todos os livros que me remetiam, ali estavam três a desafiar-me em longa insônia, e era-me impossível fixar a atenção neles. As idéias partiam-se a cada instante, desagregavam-se. Picadas no estômago. Fome. Não, não era fome: nem conseguiria mastigar qualquer coisa. Só pensar em comida me dava enjôo. Interiormente achava-me tranqüilo. Ou antes, achava-me indiferente. Sumia-se até a curiosidade inicial. Que peça me iriam pregar no dia seguinte? Julgo que não perguntei isso. Realmente era desagradável continuar naquela saleta nua, a procurar nas paredes um lavatório e um mictório inexistentes. Mas noutro canto arranjar-me-ia. Operava-se assim, em poucas horas, a transformação que a cadeia nos impõe: a quebra da vontade. E não me espantei quando, manhãzinha, me vieram tirar de uma leve modorra:

Prepare-se para viajar.

 

Saltei da cama; utilizando o copo e a moringa, escovei os dentes, lavei o rosto, molhei os cabelos; penteei-me, agarrei a valise e os três volumes:
Está bem.